OPINIÃO

Quando o analógico dribla o digital


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Numa conversa pelo celular com uma amiga, falávamos sobre moda e citamos algumas lojas. Mal desliguei o telefone e já começou aparecer ofertas dos estabelecimentos citados. Parece que “alguém” estava à espreita e ouviu nosso diálogo. Coincidência? Não é bem assim.

Especialistas chamam esse fenômeno de "ilusão de escuta" que, na verdade, é fruto de uma engenharia de dados extremamente refinada que antecipa o que você vai querer, pensar ou falar, com base em padrões de comportamento, localização e conexões sociais. Embora não haja provas públicas claras, empresas como Google, Facebook, Instagram ou assistentes de voz (como Siri ou Google Assistente), podem ativar o microfone para captar comandos de voz, “tecnicamente” somente se você deu permissão.

Outro fenômeno interessante é o hall ou listagem do que vemos, parecendo ser sempre mais do mesmo. Algoritmos sofisticados estão por trás da ordem das postagens, dos vídeos recomendados e das notícias sugeridas, enquanto navegamos por timelines que nos parecem aleatórias. É um intrincado conjunto de regras e cálculos programados para prender nossa atenção e moldar nossas decisões. Eles definem o que vemos, com que frequência e o que deixamos de ver. A comunicação, nesse cenário, se torna uma corrida por cliques, curtidas e relevância.

Vivemos a era da curadoria invisível, ou seja, estamos presenciando um processo automatizado pelo qual plataformas digitais selecionam o conteúdo que consumimos sem que percebamos os critérios usados para essa seleção. Diferente da curadoria tradicional, como a de um editor de revista, de um jornalista ou de um professor, em que há um olhar humano, crítico e com intenção clara, a curadoria invisível é feita por algoritmos baseados em dados comportamentais. Em outras palavras, é como se alguém reorganizasse diariamente a sua estante de livros, seus contatos, sua vitrine de notícias, seu mural de recados, sem o seu conhecimento ou consentimento, e ainda mais, com base apenas no que você olhou mais tempo ontem.

Presença, pausa e propósito são características do mundo analógico. São essenciais para a reflexão. Permitem a pausa, a escuta e a profundidade, nos convidando a ir de encontro às origens das palavras, dos conceitos, das relações humanas. As conversas ao vivo, a leitura de livros físicos, os encontros presenciais, o silêncio reflexivo, não estão submetidos à lógica algorítmica.

Saber a origem das coisas não é apenas uma busca por conhecimento, é uma estratégia de comunicação para a vida pessoal ou organizacional. É o que diferencia o conteúdo raso da mensagem assertiva. É o que transforma o ruído em diálogo. O analógico ensina a observar antes de falar, pensar, agir ou reagir. Refletir antes de compartilhar.

A força do analógico está baseada na inteligência, no valor do conhecimento de origem. Voltar a idade da pedra, ao homem das cavernas? Jamais! É simplesmente preservar o que se tem se revelado cada vez mais necessário com o analógico, como o resgate da escuta ativa e da presença intencional. Para ver além das ideias, opiniões e estilos semelhantes aos que já consome, que limitam o pensamento crítico e o repertório. Ter autonomia de escolha real, sem ser conduzido de forma sutil, por lógicas ocultas.

Conseguir ter discernimento sobre se o conteúdo que mais aparece é o mais importante, útil ou necessário para o seu momento.

Rosângela Portela é jornalista, mentora e facilitadora (rosangela.portela@consultoriadiniz.com.br)

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