OPINIÃO

Racismo do dia a dia


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Uma vez, há quase 20 anos, acompanhei a babá da minha filha a um pronto atendimento, pois ela tinha se cortado em uma prateleira de nossa casa e precisava tomar pontos na mão. Era no PA do Retiro. O médico entrou, não disse bom dia, costurou a moça e saiu batendo a porta. A prescrição médica foi passada pela enfermeira. Fiquei muito brava e reclamei do atendimento para a enfermeira, dizendo que era obrigação atender bem a todas as pessoas. O que parece óbvio para mim, não o é para a maioria dos atendimentos médicos, segundo dados do Movimento Negro de Jundiaí.

Na última semana, o JJ noticiou a denúncia feita por BA Victorino, uma liderança negra na cidade, sobre atendimento público prestado e como ele sentiu o preconceito instalado ali. Obviamente, mesmo sendo crime, sabemos da dificuldade de tipificá-lo. Eu diria ainda que se a pessoa for pobre e negra, o racismo é potencializado. Aliás, toda vez que o serviço de saúde - vinculado ao SUS - é prestado de qualquer jeito, sem atendimento qualificado, é o preto quem sofre mais porque ele é, simplesmente, o maior usuário do atendimento público neste país.

Obviamente que os filhos da classe alta não sabem o que é isso, afinal, seus pais desembolsam mais de R$ 15 mil para pagar uma faculdade de medicina. Conviver com a pobreza, em sua maioria, não é fato do dia a dia. Apesar de estudarem em uma entidade públical, são pouco afeitos ao serviço público porque não o conhecem e porque nunca o usaram. E, como os pretos são a maioria pobre deste Brasil, poucos têm ou tiveram contato com o preconceito e racismo. Normalmente, repetem o que seus pais, da elite branca e ideologicamente corrompida, repercutem nas redes sociais e na vida familiar.

Quando falei sobre esta realidade no meu círculo social, muitos não acreditavam no que ouviam. Ou porque desconhecem o preconceito ou porque vieram de outras regiões do País, onde a presença negra foi mais marcante. Em Jundiaí, terra de imigrantes e paulistanos, ela está intrinsecamente arraigada.

E como reverter? Educação e letramento racial já na tenra idade. Desde pequenos, precisamos ensinar a nossos filhos a respeitar as pessoas independentemente do cargo, da cor ou da posição social. Entender que todos nós temos nossas características pessoais e fazemos parte da maravilhosa diversidade humana.  E  o letramento racial tem de estar vinculado à rede municipal de ensino porque ela é responsável pela educação desde bebê.

Uma amiga médica, que estava almoçando em casa, se assustou. Ela disse que trata melhor os pretos porque sabe o quão difícil é receberem dignidade e, ao ofertar um atendimento digno, ela só recebe abraços e reconhecimento da população do SUS que por ela passa. Portanto, faço ressalvas aos médicos bem formados e dignos da nossa confiança e respeito.

É preciso um esforço para acabar com o preconceito. Sou a favor de todas as cotas e de programas de qualificação preta. Porque somos responsáveis pelo descompasso social e cultural desta população. É preciso investir mais na educação preta, na qualificação preta e nos empregos afirmativos para eles. Imagino que isso seja parte da solução do problema, mas não o todo. Dentro de nós precisamos acabar com o olhar julgador. Porque quem julga não se coloca no lugar do outro nem entende os processos pessoais e históricos a que foi submetido.

Parece tão óbvio, mas não o é. Enquanto escrevo, me imagino no meio dos jornalistas de 1888 que apoiaram a abolição da escravatura. Quase dois séculos depois estamos nós, aqui, seres humanos bestificados, ainda discutindo a igualdade humana. Bora lá, rede municipal de ensino?

Ariadne Gattolini é jornalista e escritora. Pós-graduada em ESG pela FGV-SP, administração de serviços pela FMABC e periodismo digital pela TecMonterrey, México. É editora-chefe do Grupo JJ.

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