Uma poeta e tanto! Nem se preocupe se você, leitor, não ouviu falar da moça. Ela ficou décadas – pelo menos um século! -- no ostracismo. Lançou um único livro de poemas, “Nebulosas”, em 1872, quando tinha 20 anos de idade. O livro foi saudado pela crítica da época, tendo sido elogiado pelo sempre atento Machado de Assis, observador da cena literária. Narcisa publicou poemas esparsos em periódicos e calou-se. Morreu em 1924, no Rio de Janeiro, e foi lembrada de maneira discreta por jornais cariocas.
Seus poemas dialogam com os grandes da literatura brasileira do período, como Gonçalves Dias, Fagundes Varela e Castro Alves. Republicana e abolicionista, lutou também pela emancipação feminina e combateu o preconceito e intolerância que desconsideravam a relevância da mulher na sociedade. Pioneira no jornalismo brasileiro – mulheres não frequentavam redações de jornal --, ativista, ensaísta, Narcisa Amália botou o dedo na ferida do patriarcado local, para quem a mulher deveria manter-se longe da instrução formal e do debate público. Ela também foi professora e tradutora (para ficarmos em dois exemplos, verteu para o português poemas dos franceses Lamartine e Victor Hugo). Uau! “Totalmente demais”, como diria a canção pop.
Filha de um casal de professores, que fundaram e dirigiram escolas, Narcisa foi criada em ambiente letrado. Aos 13 anos, ajudava a mãe no colégio por ela dirigido em Resende, no estado do Rio de Janeiro. Nessa mesma idade, casou-se com seu primeiro marido. Mas o rapaz torrou a grana do casal. Falido e endividado, passados quatro anos do casamento, “devolveu” a esposa à casa dos pais da moça. Ela passou a colaborar com jornais, fez traduções, escreveu seus poemas. Publicou “Nebulosas” e foi reconhecida pela crítica como um dos talentos de sua geração. Casou-se pela segunda vez, e sua vida conjugal desandou cedo. Paparicada e homenageada por colegas de ofício, poetas e jornalistas, despertou ciúmes no marido. O enciumado proibiu a mulher de frequentar saraus e recitais. Entre o casamento e a literatura, ela escolheu a segunda opção. Deixou a casa do moço e mudou-se para o Rio de Janeiro.
Em seus versos, Narcisa Amália cantou a condição de quem se viu alijada do debate, submetida à campanha infame desse ex-marido ressentido, que jamais se conformou com o protagonismo da esposa.
O sujeito espalhou o boato de que ela não era a autora dos versos que assinava (e quem os redigia, cavalheiro, alguma inteligência artificial do século 19?). “Um dia em meu peito o desalento/Cravou sangrenta garra; trevas densas/Nublaram-me o horizonte, onde brilhava/ A matutina estrela do futuro”. Essa melancolia conviveu com seu oposto, o entusiasmo do engajamento político. Narcisa militou pelo fim da escravidão, saudou os ideais libertários da Revolução Francesa e o advento da república.
Também cantou a exuberância da natureza do país, como no poema “Itatiaia”, cujos versos foram musicados. “Nebulosas” e sua autora voltam à boca de cena em razão de vestibular concorrido que recomenda a leitura da obra. Bom retorno a seu lugar de direito, dona Narcisa.
Fernando Bandini é professor de Literatura (fpbandini@terra.com.br)