OPINIÃO

Onde foi parar?


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Tenho uma história complicada com perdas materiais. A primeira de que me lembro, por haver causado um ruído que não cessou, foi o presente que ganhei da minha professora do segundo ano do curso primário na Escola Paroquial “Francisco Telles”.

Irmã Úrsula gostava muito de mim. Eu era um aluno respeitoso, cumpridor dos meus deveres. Estava na faixa dos oito anos. No final do ano, presenteou-me com um crucifixo.

Fiquei muito feliz e o levei para casa, mostrando para toda a família. Éramos meus pais, Benedicta e Baptista, e meus irmãos Raquel, João René e Jane Rute, esta recém-nascida.

Dias após, comparecem à nossa casa duas outras irmãs vicentinas. Irmã Flórida, que era a diretora da “Paroquial” e “Irmã São Luís”, vice-diretora. Disseram que o crucifixo tinha um valor afetivo-emocional para Irmã Úrsula, pois seu pai havia falecido com ele nas mãos.

Pediram que eu devolvesse o crucifixo e elas me dariam outro. Aliás, já trouxeram o outro para trocar.

E quem disse que nós encontramos o crucifixo?

Primeiro procuramos nos lugares em que deveria estar. Meu quarto, então dividido com o René. Depois, em todas as dependências da casa. Revirou-se o total de gavetas de todo o mobiliário. Em seguida, a busca insólita: sob os colchões, embaixo das camas, na cozinha, no quintal. Meu pai, desesperado, pois era o provedor de serviços de marcenaria oferecidos pró-bono para todas as irmãs vicentinas, nutria apreço e respeito por elas.

Houve busca até no forro da casa à rua 15 de Novembro. Por último, no jardim. Estaria o crucifixo enterrado junto a algum dos canteiros que eram muitos àquela época (estou falando do ano de 1955, prestes a se iniciar 1956). Nossa casa começava muitos metros a partir da rua. Ali meu pai e minha mãe faziam enormes canteiros de lírios, margaridas, não-me-deixes, dálias, cravos e outras flores.

Tudo resultou em estrondoso insucesso. Nunca mais encontramos o crucifixo com o qual o pai da Irmã Úrsula partiu desta para o etéreo.

Onde terá ido parar? Não posso garantir que, no entusiasmo do presente, eu tenha tentado mostrá-lo aos colegas. Mas a hipótese é falaciosa. As aulas já tinham terminado naquele ano letivo.

Outras perdas foram se sucedendo, muitas delas por culpa minha. Por exemplo: guarda-chuvas. Foram muitos os que deixei nos mais diversos lugares. Estava com eles – com um deles, é claro – enquanto chovia. A chuva passou e eu me esqueci. Algumas vezes voltava para apanhar. Nem todas foram bem-sucedidas. Alguém já se apossara do objeto cuja utilidade só se comprova quando chove.

Canetas, chaves, agasalhos, livros. Algumas situações curiosas resultam disso. Já deixei as chaves de meu apartamento em São Paulo, na chácara em Jundiaí. Uma vez voltei para apanhar. Em outra, porque estava muito cansado, achei melhor chamar o chaveiro. Mas aquele que estava sempre aberto na rua Augusta, no domingo à noite não funcionava...

A distração é algo que me acompanha. Certa feita, fui de carro a um casamento na Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Vila Arens. Encontrei-me com amigos e peguei carona. Só de madrugada me lembrei de que o automóvel estava na praça da paróquia. Tomei um táxi e fui buscar. Ainda bem que ele continuava lá, onde estacionei.

Triste é a perda causada por roubo. Como o do arranque violento de meu celular, à porta da Sala São Paulo. Estava enlevado com o concerto que acabara de assistir. Quando vou chamar um uber, o ciclista o arrebata de minhas mãos. Em vinte minutos, fez três saques em minha conta.

Essas as perdas dolorosas. E não podemos garantir estarmos livres delas. Mas, voltando ao tema desta digressão: onde foi parar o crucifixo de Irmã Úrsula?

José Renato Nalini é reitor, docente de pós-graduação e Secretário-Executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo (jose-nalini@uol.com.br)

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