Quando foi que nós deixamos de achar graça naquilo que a terra nos oferecia gratuitamente e começamos a comer ultraprocessados que só nos fazem mal?
Antigamente, as casas tinham jardins, pequenas hortas e pomares. Era possível guarnecer a mesa de refeições com produtos domésticos. Aos poucos, aderimos ao fastfood, à facilidade dos congelados, passamos a desprezar esse patrimônio inestimável.
Só que o mundo mudou e está envenenado com a excessiva emissão dos gases causadores do efeito estufa e a resposta da Terra se dá sob a forma de emergências climáticas.
Se não podemos reverter o curso da crescente enfermidade do planeta, ao menos podemos, em escala micro, voltar às melhores práticas. E elas estão no cultivo daquelas coisas simples que foram esquecidas, mas garantem a biodiversidade e aumentam a resiliência frente ao flagelo das mudanças climáticas. Vamos recuperar os saberes coletivos, partilhar essa riqueza ancestral e proteger o território, voltando a ter em casa os temperos – cebolinha, manjericão, coentro. Plantando gengibre, que é bom para quase tudo. Um pouco de alface, cenoura, rabanete, agrião. Por que não berinjela? Vejo tomates brotando naturalmente em pequenas brechas das calçadas. Sementinha corajosa a do tomate.
Vamos ter mais árvores perto ou dentro de casa. Principalmente as frugíveras, que atraem borboletas e pássaros. Eles são importantes para a polinização. Tratar bem as árvores, mas também tratar bem as abelhas.
Houve um tempo em que na escola, na disciplina “Economia doméstica” e “Trabalhos manuais”, ensinava-se a preservar a cultura tradicional e tudo aquilo que era transmitido pelas gerações, de avó para mãe e filha. E assim continuava, como um patrimônio familiar.
Por que não resgatar as receitas antigas e tentar conhecer e valorizar a cultura alimentar brasileira? A gastronomia pode desempenhar um papel importante ao mostrar à cozinheira que há uma infinidade de ingredientes nativos. Esse cultivo interessa para o ambiente, para a economia e para a coesão da sociedade em torno a valores fundamentais.
A biodiversidade brasileira precisa ser apropriada pela cozinha, seja nos cursos de gastronomia, seja no âmbito doméstico, seja nas aulas práticas das escolas que não podem mais se satisfazer com o “decoreba”. É urgente a transmissão de um saber prático e voltar à cozinha em casa vai combater a epidemia de obesidade que acometeu os Estados Unidos e que nós, de forma incauta, importamos para nós.
Nossos biomas são riquíssimos. O nosso solo, quando não empesteado por fertilizantes e herbicidas que já foram proibidos em seus países de origem, mas que têm livre acesso ao Brasil sem lei e sem fronteira, pode devolver milagres a quem se propuser a cultivar.
A gastronomia pode nos fazer conhecer melhor a Amazônia, o Pantanal, o Cerrado, a Mata Atlântica, a Caatinga, os Pampas, do que as cansativas aulas de geografia. Quem se dispuser a elaborar receitas, a fazer concursos para suscitar a curiosidade e a criatividade de tantos jovens que preferem cozinhar a serem ajudantes de almoxarife (profissão que desaparecerá dentro em breve) e levar a riqueza da biodiversidade a sério, estará conectando a comida com um modelo novo e imprescindível de desenvolvimento do Brasil. À luz de uma agricultura saudável e regenerativa, usando o solo de maneira racional, com a vantagem de manter a floresta em pé. O que é mais lucrativo do que fazê-la se transformar em carvão.
Pode-se começar em casa, depois no bairro, principalmente naqueles que ainda não perderam a singeleza de uma zona rural que vai acabando, infelizmente. Mas um caminho de real desenvolvimento para as novas gerações está na cultura alimentar renovada, na agroflorestal, na bioeconomia, na gastronomia consciente, na exploração da bioeconomia. Se fizermos isso, o subproduto não é descartável: é salvar a Terra e, portanto, a continuidade da vida das futuras gerações.
José Renato Nalini é reitor, docente de pós-graduação e Secretário-Executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo (jose-nalini@uol.com.br)