No dia primeiro de janeiro celebramos o Dia Mundial da Paz. Como já acontece há cinquenta e oito anos, o Santo Padre nos convida a iniciarmos o novo ano civil imbuídos de um espírito renovado, sob as bênçãos da Mãe de Deus. Nesse ano, o Papa Francisco nos exorta a compreendermos a paz numa dinâmica de perdão de nossas ofensas. Movido pelos apelos de reconciliação do ano jubilar, o Pontífice nos recorda que somos todos devedores uns dos outros, na direção de uma humanidade mais configurada a Jesus. Além disso, ele retoma o pensamento de São João Paulo II em Socillitudo Rei Socialis, de 1987, numa denúncia das estruturas de pecado proliferadas não apenas pela iniquidade de alguns, mas que se enraízam numa cumplicidade generalizada.
Em tempos de flagrante promoção de discursos de ódio e de multiplicação de casos de violência por parte daqueles que deveriam prezar pela paz, somos chamados a uma reflexão sobre o nosso papel como cristãos como sinais de contradição a esse mundo. Mais do que almejarmos uma paz intimista, individual, fruto de alívio da consciência, deveríamos começar o novo ano com um olhar apurado sobre as circunstâncias sistêmicas de nossa sociedade que fazem da paz uma palavra distante e da violência uma triste recorrência.
A paz que devemos procurar não pode fechar os olhos para os problemas que nos afligem. Como nos alerta o Papa, somos atormentados por desafios sistêmicos interligados. Francisco denuncia as “desigualdades de todos os tipos: os tratamentos desumanos dispensados aos migrantes, a degradação ambiental, a confusão gerada intencionalmente pela desinformação, a rejeição a qualquer tipo de diálogo e o financiamento ostensivo da indústria militar. Todos estes fatores são uma ameaça real à existência de toda a humanidade”. É sobre essas estruturas de pecado que São João Paulo II falava quando acusava a cumplicidade de todos aqueles que se deixavam conduzir pelas injustiças generalizadas.
A paz que desejamos não é simplesmente uma ausência de conflitos. Às vezes, quando pedimos que Deus nos conceda a paz, podemos nos esquecer que ela é tarefa nossa também. A paz que o Senhor deseja para nossa vida não é meramente fruto de um alívio das tensões cotidianas. Mares calmos podem esconder terremotos submersos. Por isso, a paz não é uma proposta intimista, que fecha os olhos para os problemas que nos afligem. A paz que almejamos enquanto cristãos jamais poderá advir de ocultamento e silenciamento. Ocultamento dos dramas que afetam nossos irmãos e silenciamento proposital de vítimas de estruturas corrompidas de pecado, resultantes de injustiças humanas. A paz do evangelho é resultado de uma adesão a um projeto de vida conformado ao Reino anunciado por Jesus de Nazaré. Ele mesmo, longe de se adequar às exigências e vicissitudes da pax romana, que se impunha pela lógica da espada, soube anunciar um Reino de Esperança a partir da força dos pequenos e pobres.
Há uma música muito bonita do grupo O Rappa, chamada “Minha alma”, muito ouvida pelos jovens de comunidades periféricas da nossa diocese que diz “pois paz sem voz não é paz é medo!” Essa canção traz uma reflexão interessante sobre a paz que devemos almejar. A proliferação dos discursos de ódio motivados por grupos extremistas nas redes sociais fez avançar determinadas formas de expansão da violência que não condizem com a proposta do Evangelho. Motivada por um desejo de ordem imposta pela dinâmica dos interesses do capital, a violência é justificada em sua face mais injusta. Nesse sentido, multiplicam-se os casos de práticas de violência por parte de agentes do Estado que deveriam prezar pela paz da população. Já não são mais casos isolados, mas repetitivos e disseminados, seja nas instituições de segurança pública, seja nas articulações políticas. Esse tipo de violência não raras vezes seleciona seus alvos sem isonomia, mas imbuída de preconceitos de classe e cor que herdam aquilo que de mais injusto existe na história de nosso país.
Por trás de um discurso de garantia da ordem, justifica-se um aumento vertiginoso de práticas violentas que culminam na morte prematura de jovens, em sua maioria, negros, sobretudo em periferias de grandes cidades. Infelizmente, essa recorrente ação de violência serve-se de uma pseudo garantia da ordem para se chegar a uma paz inexistente, privilégio de alguns. Na perspectiva bíblica, não existe paz sem justiça. Na dinâmica do Reino, paz e justiça devem se abraçar e não se excluir, como nos ensina o Salmo 84. Uma paz que faz calar pela força não é a paz que o evangelho nos propõe. Uma paz que é fruto de violência gratuita por aqueles que deveriam prezar pela vida é semente de guerras vindouras ainda piores. E quem a aplaude, nega a paz para si e para as gerações futuras.
Desejamos um ano novo cheio de paz para todo o nosso povo, mas desejamos que essa paz não seja resultado de uma imposição violenta e cruel, mas fruto de uma justiça integral que abarca a vida e vence as estruturas de pecado que assolam nossa sociedade. Desejamos uma paz inquieta, alegre, mas atenta, que não se cala diante dos horrores da violência seletiva em nosso país tão desigual. Uma paz que não virá de negociatas e interesses eleitoreiros, mas brotará de um Reino que insiste em ser esperança mesmo quando as forças da morte tentam falar mais alto.
Uma paz que se preciso for, grita.
Que o ano novo nos traga a paz que nosso povo tanto deseja.
Sejamos promotores dessa paz!
Dom Arnaldo Carvalheiro Neto é Bispo Diocesano de Jundiaí
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