OPINIÃO

Receber o que a vida lhe oferece


| Tempo de leitura: 3 min

Acabei de receber uma mensagem de um casal de amigos que estão aproveitando a lua de mel em um lugar exótico, destino incomum para a comemoração das bodas que nos deram o privilégio, eu e minha esposa, de acompanhar e abençoar: o Sul do continente Africano.

Naturalmente, um dos passeios que o jovem casal compartilha conosco é o chamado “safari” onde, ao contrário do que se fazia no começo do século, o objetivo da excursão motorizada pela savana é a contemplação da vida selvagem, representada no seu ápice pela megafauna africana.

Na mensagem vem um vídeo de um grupo de leoas se alimentando no fim da tarde: um búfalo idoso que não conseguiu ser ágil o suficiente para se proteger junto da própria manada. Jazia ele então, com três leoas sobre sua carcaça, distante um pouco de sua cabeça degolada que era protegida de hienas por outras duas leoas.

A imagem capturada pelo celular do meu amigo certamente contrasta quando comparada com a alegria da união de um matrimônio, não é mesmo? Uma é o ápice da vida, surgimento de uma nova família, enquanto a outra é uma “poda” da mesma vida, impondo o fim de um indivíduo para alimentar os outros. 

Acredito que a consciência de que estes dois aspectos, começo e fim, morte e nascimento, delicadeza e brutalidade, são “gêmeos siameses” (e indissociáveis) da vida e se mostram como sinal de uma visão mais madura e sábia sobre a essência desta mesma vida, onde nada é completamente bom ou inteiramente mal, não existe completa escassez, nem absoluta abundância em nenhum tipo de evento.

O copo sempre está “meio cheio” e “meio vazio”, ao mesmo tempo. A partir da aceitação destes fatos começou em mim uma visão “mais adulta” da vida (e menos maniqueísta, típica de crianças). 

Essa semana falei em minhas mídias sobre o dezembro vermelho, onde recordei um período dramático da minha formação médica: estava no meu ciclo clínico durante o auge da Aids e o cenário potencialmente letal das doenças sexualmente transmissíveis. Essa doença regurgitou da sombra inconsciente da sociedade (onde me incluo) os preconceitos sobre hábitos, escolhas de afetividades e gênero, mas principalmente, a responsabilidade que cada um deve ter por estas escolhas.

Naquela época, no fim do século XX, essas escolhas, outrora “confortavelmente” veladas, passaram a ser compulsoriamente expostas e discutidas, sob o risco de disseminação de uma doença potencialmente mortal e para o qual não havia remédio. 

Hoje, apesar dos recursos e a tecnologia terem avançado muito (esse também é o lado “meio cheio” do “copo”) essa necessidade de autocuidado e responsabilidade de suas ações continua e não pode ser esquecida sob pena de regredir ao status de ignorância intencional que havia antes. Isso é um avanço de consciência e hoje a sociedade é muito mais sincera e transparente, ainda que muito falte para ser acolhedora com os enfermos de doenças que carregam consigo preconceito, como se o mal que fizessem não fosse o suficiente.

Fica então, a reflexão e a conscientização, que não deve ser vista como uma obrigação ingrata por uma catástrofe, mas uma oportunidade de sermos melhores revelando um pouco da nossa sombra. Acredito que o surgimento de uma vida autêntica e verdadeira venha desta ação.

Alexandre Martin é médico, especialista em acupuntura e com formação em medicina chinesa e osteopatia (xan.martin@gmail.com)

Comentários

2 Comentários

  • Elizabeth Martin da Silva 06/12/2024
    Parabéns Alexandre, sábias palavras, gostei muito.
  • B.M. de Castro 06/12/2024
    Não sou grande leitora mas não me lembro, aos 80 anos, de ter visto uma comparação tão simples verdadeira. Parabéns Dr Alexandre !!!