OPINIÃO

Mês de cães danados


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Romance de Moacyr Scliar, “Mês de cães danados – uma aventura nos tempos da Legalidade” conta a história de um boa vida, garotão despreocupado, conquistador e mulherengo, que vivia da gorda mesada do pai, fazendeiro no Rio Grande do Sul. Mas o jogo mudou e o playboy agora virou um morador de rua boquirroto que, por alguns tostões, conta suas aventuras e desventuras. Ao mesmo tempo, rememora o que ocorreu naquele agosto de 1961, quando o presidente Jânio da Silva Quadros renunciou, jogando no lixo a até então maior votação da história republicana e lançando o país numa barafunda política. “Agosto, mês do cachorro louco”, diz o dito popular. 

Na história da centenária república brasileira, recheada de golpes, tentativas de golpes e contragolpes, agosto abrigou dois grandes traumas: o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, e a citada renúncia de Jânio, sete anos depois. No romance, Scliar coordena a história nacional -- mostrada pelo que os jornais contavam -- com a vida inconsequente do moço bonitão, vindo de Pelotas, onde morava com uma tia para a Porto Alegre da ferveção política de 1961. O narrador, que se diz chamar Mário Picucho, vive na sarjeta de uma ladeira no centro da capital gaúcha, nos anos de 1970. Narra sua história pessoal para um turista vindo de São Paulo, que lhe pinga grana na lata em que arrecada esmolas. 

Uma década antes, Picucho curtia adoidado enquanto frequentava o curso de Direito, defensor do mantra “não deixe a faculdade atrapalhar sua vida de estudante”. Exigiu do pai grana para um apartamento próprio, longe de pensões ou república de estudantes. Também de papai veio o dinheiro para um carro, fundamental nas suas conquistas amorosas. Intempestivo, Mário não tolerava desaforos e chegou a disparar tiros em lustres da faculdade. Saiu no braço com um engraçadinho que provocou o “filho de estancieiro vindo dos rincões da província”. Picucho conta que aprendera a atirar e a esgrimir enquanto morava com a tia, irmã de seu pai, em Pelotas. A boa senhora paquerava o professor de esgrima e fazia questão de o sobrinho manejar bem armas. 

A vida familiar do narrador é digna de drama folhetinesco. Como folhetinesca era a cena política nacional, com um presidente bufão e opositores canastrões ávidos para ocuparem a cena.

Consumada a renúncia, a patota chegada a golpes e casuísmos não quer a posse do vice-presidente João Goulart. No Rio Grande do Sul, o governador Leonel Brizola lidera campanha para que se cumpra a lei – daí o subtítulo do romance. Nesse cenário, o narrador conhece “a mulher da sua vida”, mas o acaso revira tudo. 

Scliar domina seu ofício. A narrativa tempera humor e drama em doses generosas. O resultado é um livro divertido que, ao contar a trajetória de um falastrão, reconta parte da história de um país repleto de tutores e candidatos a tutores, todos afeitos a controlar – sempre com as “melhores intenções” – a vida nacional.

Moacyr Scliar nasceu em 1937, em Porto Alegre, e lá morreu, em 2011. Médico e escritor, publicou mais de setenta títulos, entre romances, ensaios e coletânea de contos e de crônicas.

Fernando Bandini é professor de Literatura (fpbandini@terra.com.br)

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