LUTA ANTIMANICOMIAL

Reforma psiquiátrica: de prisões a tratamento humanizado

Por Nathália Sousa |
| Tempo de leitura: 5 min
Ronan Humberto do Lago Müller / Creative Commons
O Hospital do Juquery funcionou por 125 anos em Franco da Rocha
O Hospital do Juquery funcionou por 125 anos em Franco da Rocha

Do início até a metade do século XX, muitos hospitais psiquiátricos foram construídos, mas a ocupação desses espaços, que acabaram virando prisões com tortura, forçou a adoção de uma mudança. A lei que institui a Reforma Psiquiátrica no Brasil é do início do século XXI, mas a movimentação para que pacientes psiquiátricos fossem tratados como pessoas, de fato, surgiu anos antes. Até então, tanto pessoas com transtornos mentais quanto indivíduos indesejados pela sociedade eram levados a essas colônias. Para que o motivo da reforma não seja esquecido, maio é o mês Luta Antimanicomial.

Em Jundiaí, existia o Instituto de Psiquiatria e Higiene Mental, no Jardim Tamoio, desativado no fim dos anos 80. Também havia um hospital psiquiátrico em Várzea Paulista e, fora da região, mas ainda próximo, o grande Hospital do Juquery, em Franco da Rocha, que funcionou do fim do século XIX até 2021. Este último, foi uma das primeiras e maiores colônias do tipo no país.

JUNDIAÍ

Coordenador de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas em Jundiaí, Alexandre Moreno Sandri fala sobre o passado. "Na região de Jundiaí, como é sabido, havia dois hospitais psiquiátricos - um no bairro Tamoio e outro em Várzea Paulista -, os quais foram fechados em decorrência do movimento de transformação do modelo de saúde mental do Brasil. À época, a cidade não tinha implantada a rede de serviços e as Residências Terapêuticas.

Com o fechamento das unidades, pacientes foram transferidos e só anos depois a cidade ganhou novas unidades de tratamento, desta vez, humanizado. "A partir de 2018, com a primeira Residência Terapêutica, o município iniciou o processo de desinstitucionalização, trazendo moradores de Jundiaí que estavam internados em hospitais psiquiátricos espalhados pelo estado, e ofertando a eles acompanhamento na Rede de Atenção Psicossocial", diz ele sobre o processo que foi concluído em 2023, com a abertura da terceira residência terapêutica na cidade e o atendimento total da demanda.

Sobre o modelo seguido, Sandri diz que hoje o tratamento vai na contramão do que existia no século passado e evita o confinamento. "As internações obedecem ao critério de excepcionalidade, ou seja, só devem ser realizadas como último recurso após esgotados os demais, e têm caráter de máxima brevidade, ocorrendo pelo período mínimo necessário para a estabilização do quadro e a retomada do cuidado na rede comunitária. É fundamental observar que, durante o período de internação, o paciente não perde o contato com a sua rede comunitária, seja com os seus familiares ou a equipe do serviço que faz o seu acompanhamento, que pode efetuar visitas, além de realizar a discussão do caso com a equipe da enfermaria. Hoje, o tempo médio de internação tem sido de sete dias."

Sendo assim, o que existe no presente e de projeto de futuro é o tratamento do paciente livre, principalmente nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que funcionam com portas abertas. "Esse modelo de atendimento, por ora, é o previsto e o que planejamos aperfeiçoar com o tempo. Jundiaí é uma cidade que caminhou bastante na expansão da rede, diferentemente do que verificamos em algumas localidades, onde ainda existem lacunas de cuidado."

"A cidade também tem investido, sendo ainda um campo de possibilidades, nas ações de geração de trabalho e renda para as pessoas com transtornos mentais, o que é algo fundamental para ampliar as possibilidades de circulação social, o deslocamento de lugar social e o estigma. Esse é um dos apontamentos para o futuro: a expansão dessas ações", conclui.

O JUQUERY

Localizada em Franco da Rocha, nome do fundador do antigo Hospital de Alienados da Província de São Paulo, antigo nome do Hospital do Juquery, a instituição, durante 125 anos, foi o retrato do atendimento à saúde mental no país, com confinamentos, violência, reforma e, por fim, desativação. Psicólogo, ex-diretor do Hospital de Custódia de Franco da Rocha e ex-colaborador do Hospital do Juquery, Sidnei Celso Corocine presenciou na instituição a transição promovida pela Luta Antimanicomial.

"Quando entrei no Juquery, havia a preparação para o fechamento, então tinha um sistema para barrar a entrada de pessoas. Trabalhei um ano na clínica, mas já estavam sendo implantadas as mudanças, então a internação máxima era de 90 dias. Tinha uma pré-internação e, se a pessoa não melhorasse, ia para essa clínica e ficava por no máximo 90 dias. Depois voltava para a família. Isso já fazia parte da Reforma Psiquiátrica. Aconteceu na época do Franco Montoro, para reverter essa internação manicomial de longo período, e o Juquery foi referência no Brasil", lembra.

Sidnei diz que na época havia um tratamento equivocado da pessoa com transtorno mental, além de superlotação do espaço. "Muitas clínicas tinham internações que matavam ao invés de tratar. Um exemplo era o hospital que que virou o filme Bicho de Sete Cabeças e gerou toda essa discussão. Hoje, acho que não há tantos casos porque hospitais maquiam com mais facilidade e o SUS já implantou uma série de normas."

O psicólogo enxerga mudança no método, mas percebe pensamentos ainda segregadores na sociedade. "Hoje é raro encontrar esse isolamento, a recomendação é outra, mas ainda tem denúncia de paciente que morre, é preciso mudar a cabeça das pessoas. Ainda existe o pensamento manicomial muito presente na população, achar que internar vai resolver, mas, na realidade, é esconder essas pessoas da sociedade", pontua.

Sidnei integrou o encontro que impulsionou a criação da Lei Paulo Delgado, que institui a Reforma Psiquiátrica, e fala sobre a importância da humanização, algo negligenciado antigamente. "Nesses anos de trabalho, vejo que os pacientes são vítimas e o que sobra a eles é se defender. Raros casos têm atos de violência sem significado, geralmente estão respondendo às agressões que estão sofrendo. Ainda existem pessoas que acham que é uma questão espiritual, tem abordagens sensacionalistas na mídia, que mostram alguém amarrado em casa, tratado como bicho. Na época que eu estava no Juquery, aconteceu, em Bauru, o encontro de usuários da saúde mental e houve a estruturação da Reforma Psiquiátrica", diz ele, enfatizando a importância da participação de familiares também, que retrataram a dor de pacientes.

Ainda assim, ele chama a atenção para o fato dos hospitais de custódia seguirem padrões antigos. "Apesar de tudo, o CNJ fez uma resolução sobre a extinção de hospitais de custódia e só o estado de São Paulo, que tem uma grande população internada, não está cumprindo. Há discussões sobre o que fazer, porque há muitos usuários de drogas, que já perderam os familiares e não têm um lugar para onde ir. Tem um movimento para irem para residência terapêutica, mas há uma resistência de gestores que se apegam aos delitos cometidos e voltam todas as decisões a esse imaginário que associa a loucura à violência."

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