OPINIÃO

O esquecido e o inexistente

15/03/2024 | Tempo de leitura: 3 min

Quando, ao fazer arrumação na casa, abrimos aquela gaveta onde guardamos alguns vestígios do nosso passado, podemos encontrar objetos simples, mas carregados de significado, tais como agenda velha, foto 3x4 (lê-se "foto três por quatro" , para informação do meu leitor(a) mais jovem), bilhete de entrada de cinema, figurinha "difícil" de chiclete e por aí vai. Outro dia deparei-me com uma foto de classe de uma escola que cursei, lá no século passado. Devo confessar que, caso não houvesse anotado os nomes ao lado de cada aluno, passaria um bom tempo até me encontrar, de pé, mais ao fundo!

"Caramba!" - pensei alto, quase falando - "que outras surpresas podem pular daqui de dentro?". Parecia até que havia aberto a caixa de Pandora e não uma gaveta do armário.

Ainda que tenha sido um pensamento divertido no momento, escapuliu de mim uma constatação muito séria: do jeito que entendemos a vida, pelo modo que a organizamos na nossa mente, a vivência do nosso passado é essencial.

Tal como em uma narrativa interna que contamos para nós mesmos, parece que cada elemento do nosso tempo presente só pode ser devidamente aceito e atribuído ao seu lugar caso seja ele atrelado ao seu passado, à uma explicação da sua origem. Na falta dela, sentimo-nos desamparados, incapazes de compreender o que vivemos pois nos falta uma explicação invisível de como tudo "chegou" até o presente.

Isso torna a memória e a capacidade de evocar o passado uma capacidade cerebral extremamente importante para o bem-estar e mostra o quão inabilitante são as formas de demência, que estão cada vez mais frequentes no nosso meio, à medida que a nossa população envelhece.

Ansiedade e depressão são dois distúrbios de humor que acompanham com frequência as demências, em particular o Alzheimer, justamente por esse motivo. De uma maneira abrupta, os pensamentos começam a carecer de sentido, como se estivéssemos diante de um quebra-cabeça onde a falta de peças impede apreciar o quadro completo

Devido a demanda crescente por uma solução, pesquisas no campo genético e comportamental começaram a indicar os preventivos, como exercícios físicos, suplementos dos mais variados e algumas medicações.

Todos muito auspiciosos, mas nenhum deles definitivo e, principalmente, nenhum alivia completamente o medo e ansiedade decorrente de ser subtraído de algo muito importante como a trajetória de vida, o que, há um tempo, era intocável.

Já disse em textos anteriores que lembrar do passado coloca energia em um campo que pode trazer produtos agradáveis, ou não, para o presente. Gostaria de lembrar, então, que uma maneira saudável de vivenciar o passado é visitá-lo, sem, contudo, instalar-se e viver nele.

Como o passado não tem em si a força de atuar no presente, ele só nos presta para trazer-nos ao momento atual, ao que somos agora. Dores e angústias são encerradas depois que os objetivos são atingidos. O mesmo para festas e alegrias que terminam no doce sabor da possibilidade de sempre ocorrerem de novo, na criação de novas oportunidades.

Todas as influências do passado além deste trivial advém de um poder que destinamos a ele e por isso também controlamos a sua dose. O que não é energizado pode ser esquecido, mas, de forma alguma é inexistente e deixa no presente a sua herança.

Alexandre Martin é médico especializado em acupuntura e com formação em medicina chinesa e osteopatia (xan.martin@gmail.com)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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