OPINIÃO

Linguagem e manipulação

24/01/2024 | Tempo de leitura: 4 min

Qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento em cinema sabe que a montagem de um filme pode, de diferentes formas, manipular seu espectador. Alguns grandes cineastas também são grandes montadores (e manipuladores). Não que tenham as mãos pregadas na mesa de edição; ainda no processo de filmagem, eles pensam os cortes, decupam o filme.

A montagem tem o poder de criar o movimento, a ação, o ritmo. Pense em algumas famosas cenas de luta nos filmes de wuxia, por exemplo. Há momentos em que um confronto de espadas ou entre guerreiros simplesmente não existe. Ou seja, esse confronto simplesmente foi recriado pelo choque de quadros, pela impressão de continuidade.

Há boas e más montagens, eficientes e manipuladoras, explícitas ou invisíveis. Nem sempre uma montagem explícita é ruim e a montagem invisível - reinante no período do cinema clássico americano - às vezes pode ser pouco eficiente. O que cabe ao crítico é abordar caso a caso, fazer análise fílmica e compreender como determinado corte foi utilizado em determinada cena ou sequência e qual o resultado foi obtido. Sei bem o que alguns vão dizer: uma "análise clínica" do cinema torna a experiência mais chata. Penso diferente: olhar com cuidado e de forma crítica produz descobertas e amplia possibilidades.

Em "A Sociedade da Neve", de J.A. Bayona, há exemplos claros de montagem manipuladora, aquela que não quer se esconder, que grita para nós no pior sentido, apela aos abismos inclusive de forma rasteira. Piora o filme, e muito. São alguns momentos em que a narrativa volta ao passado das vítimas do acidente de avião na Cordilheira dos Andes, pessoas que sobreviveram à queda mas terminaram perdendo a vida antes de serem resgatadas. Nesse caso, usa-se o flashback para evidenciar universos opostos.

Primeiro vemos um rapaz morrendo, agonizando, nos braços de outro, no interior do avião cercado pela neve, abarrotado de pessoas doentes. Em seguida, com o corte, somos levados abruptamente ao passado recente, no qual aquele mesmo rapaz - saudável, corado, feliz, sob a fotografia um pouco amarelada e com cores mais fortes - é visto vivo. Tudo age segundo o contraponto entre vida e morte. A emoção tenta nos agarrar no laço.

Não creio que se trata de um caso de montagem expressiva ou de atrações, ainda que essa oposição - vida e morte, sob os efeitos das cores e das interpretações - possa exemplificar algo abstrato. Tudo o que é dado por consequência desses cortes ao passado recente continua ligado à história contada de imediato, a história de sobrevivência, e sequer o filme arrasta demais essas situações. São lampejos que não partem do pensamento de ninguém, da lembrança de ninguém: é um golpe, apenas um golpe barato, do próprio filme.

Para esse tipo de montagem com recurso narrativo do flashback, Marcel Martin, em "A Linguagem Cinematográfica", deu o nome de montagem invertida (uma das quatro divisões no interior da chamada montagem narrativa), que subverte a ordem cronológica "em proveito de uma temporalidade subjetiva e eminentemente dramática, indo e voltando livremente do presente ao passado". Não se trata de um retorno ao passado como imposição a uma personagem, que acabou lembrando algo, ou de uma situação passada que precisa ser explicada à luz de uma descoberta futura. É somente um golpe de apelo dramático.

Em outro ponto, a montagem pretende explorar a força dos sobreviventes ao nos lançar, de novo, ao passado, dessa vez à cena do jogo de rúgbi mostrado no início do filme. Ao incluir a cena de uma prática esportiva, com seus rapazes determinados, era provável que Bayona (um dos autores do roteiro) já tivesse em mente sua repetição. Mais ainda: é provável que essa cena tenha sido incluída no início apenas para reaparecer, menor, ao fim.

"A Sociedade da Neve" é muito melhor quando prefere a ação presente. Sua frieza literal, somada à condição de suas personagens, em meio ao nada, à espera do nada, contra as montanhas, por si só oferece gatilhos e mais gatilhos à emoção. O filme tem bela fotografia (de Pedro Luque), recriação de cenário eficiente (feita a várias mãos) e elenco equilibrado. O diretor tem bom domínio da ação, mas, como vimos no fraco "O Impossível", sacrifica parte considerável da experiência ao se voltar ao drama manjado sobre reencontro e despedida. Bayona deveria mirar menos em Steven Spielberg e mais em Alfonso Cuarón ou em Clint Eastwood, mas, pelo que se vê em "A Sociedade da Neve", continua querendo ser Spielberg.

Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com; contato em ramaral@jj.com.br

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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