OPINIÃO

O que não vemos

18/01/2024 | Tempo de leitura: 3 min

Conta-se que, ainda na aurora da sétima arte, os produtores de filmes não permitiam cortar seus atores pela metade. Ou seja, eles precisavam ser mostrados na tela de corpo inteiro. Por que pagar um salário para um ator ou atriz ser exposto em pedaços? Tal mentalidade soa hoje engraçada. Demorou para que os realizadores entendessem que não mostrar, no cinema, é tão importante quanto seu oposto: é da natureza da arte.

Decupar é pensar o filme em pedaços, durante sua filmagem; é organizar os planos, fazer escolhas relacionadas ao lugar da câmera e dos atores, o espaço a ser explorado no cenário. O cinema desenvolve-se a partir dessas escolhas: o que colocar, o que retirar, o que mostrar mais ou menos, dando função e espaço aos elementos na chamada mise-en-scène.

Já vimos situações assim em muitos filmes: alguém conversa com outra pessoa e no enquadramento enxergamos apenas uma personagem. Da outra, ouvimos só a voz. É o que ocorre, por exemplo, no primeiro diálogo entre Bruce Willis e Ving Rhames em Pulp Fiction. Para Quentin Tarantino, era preciso mostrar apenas o herói,  o boxeador pago para perder a luta, não quem o paga, o chefão do crime. Ao não mostrá-lo, Tarantino amplia seu poder. Nesse caso, Rhames precisava estar fora de campo.

Em Os Incompreendidos, François Truffaut faz algo semelhante ao exemplo de Pulp Fiction: em uma instituição para menores desajuizados, a criança Antoine Doinel é interrogada por uma voz feminina. A câmera fica no garoto. Da mulher, só a voz. Se para Tarantino o fora de campo serviu para ampliar a força de uma personagem, para Truffaut era o caso de ajudar a compreender todo um universo em questão: o da criança colocada em um sistema punitivo, sem face, desumanizado porque adulto.

Não ver é um exercício de imaginação. Quantas vezes, em filmes clássicos, pensamos o que teria acontecido com as personagens após o fade out, ou entre um salto no tempo (a elipse)? Billy Wilder utilizou a elipse para driblar a censura, nos anos 1940, com seu Pacto de Sangue, ao sugerir que o casal central fez sexo. De um tempo para outro, eles trocam de lugar no sofá; ela fuma. É o suficiente para nossa compreensão.

Sobre cortar parte dos atores em cena, gosto de alguns exemplos de Jeanne Dielman, o celebrado filme de Chantal Akerman. Ao se aproximar da porta para receber um cliente, a personagem aproxima-se da câmera o suficiente para que parte de sua cabeça fique fora do quadro. Akerman recusa-se a fazer um movimento e mostrar seu rosto. Qual o objetivo? Acredito que se trata de uma escolha formal, relativa às composições meticulosas que envolvem o filme. É como se a cineasta colocasse o espectador como observador do quadro, da composição, não de uma ação específica, ao mesmo tempo que não conseguimos ver qualquer expressão da mulher ao dialogar com os homens que passam por sua vida.

Não ver pode ajudar a aprofundar nossa experiência com o filme. Como em Elefante, de Gus Van Sant, no qual os jovens entram e saem de campo o tempo todo, em excelente orquestração. Em Encurralado, no qual vemos apenas as botas do vilão, sem que seu rosto nunca seja revelado. Em tantos filmes nos quais tiros e explosões fora de campo anunciam o pior. Em muitos casos, mostrar só atrapalha.

Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com (ramaral@jj.com.br)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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