Livro de memórias do médico Drauzio Varella, "O exercício da incerteza" é um tratado bem elaborado a respeito da medicina, do trabalho médico, e da saúde pública no Brasil. É também uma aula de história da ciência médica ao longo dos séculos. Aula com o didatismo e a clareza de quem sabe como poucos divulgar conhecimento científico. Porque esse paulistano do Brás, neto de imigrantes espanhóis e portugueses, nascido em 1943, é um grande divulgador de ciência. Seu didatismo, ele reconhece, vem do treinamento ao longo de quase duas décadas como professor de cursos pré-vestibulares. Essa história do professor está no livro, assim como a do garoto que perdeu mãe e avó muito cedo. A infância de Varella está bem detalhada em outro de seus livros, "Nas ruas do Brás", um volume que mostra costumes e rotinas em um bairro proletário na cidade que se expandia. Mas voltemos ao "Exercício da incerteza". Esse médico sabe informar. A limpidez com que explica, por exemplo, como funcionam no cérebro humano os estímulos, satisfações e frustações de quem desenvolve a dependência química, seja para drogas legais como álcool e tabaco, ou ilegais, como cocaína e crack. Seu texto é acessível e informativo.
Há um panorama da medicina contemporânea, que abandona o personalismo e voluntarismo de uns poucos sabichões por evidências científicas, estudos comparativos, largo emprego de estatística e compartilhamento de informações em publicações especializadas. Trata do desenvolvimento de sua especialização, a oncologia, desde os tempos em que não se pronunciava a palavra "câncer", passando pela sonegação do real quadro clínico de um paciente com a doença, suas chances e riscos ao enfrentar a enfermidade.
Varella fala da medicina pública no país, das tratativas para se criar um sistema universal que abrigasse todos os brasileiros. Do antigo Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) até chegar ao atual Sistema Único de Saúde (SUS), generoso na sua formulação, e vilipendiado pela torpeza de gestores miúdos e graúdos. Fala também da medicina suplementar - os conhecidos planos e convênios de saúde -, nascida na década de 1950 em empresas públicas e privadas, seu crescimento e atual protagonismo no cenário da saúde brasileira.
O livro está dividido em capítulos curtos, nos quais alguns assuntos mais exigentes são retomados. Assim acontece, por exemplo, com o histórico da aids, enfermidade desconhecida na década de 1980, carregada de estigmas e preconceitos. Varella foi um pioneiro no tratamento da doença no Brasil, depois de um estágio passado nos Estados Unidos. Fala de seu trabalho voluntário em cadeias no Brasil e chega até a pandemia de Covid, em 2020. Além do vírus letal, a doença contou com a desinformação e o negacionismo. O ponto final das memórias é pingado em março de 2022.
Bela trajetória de quem, convidado por uma rádio paulistana para informar a respeito de saúde, teve a voz reconhecida. Do rádio, saltou para a televisão e depois para a internet. Varella virou um astro pop. Astro que esclarece, informa e orienta, para o bem-estar e a saúde de todos.
Fernando Bandini é professor de literatura (fpbandini@terra.com.br)