Opínião

O mesmo filme, um filme diferente

Por |
| Tempo de leitura: 3 min

Em "A Estética do Filme", entre tantas passagens preciosas, peguei-me pensando sobre uma que se encontra no terceiro capítulo, de autoria de Marc Vernet (o livro é organizado por Jacques Aumont): "Quando se vai ver um filme de ficção, vai-se sempre ver simultaneamente o mesmo filme e um filme diferente". O autor coloca duas questões: (1) todos os filmes contam - "sob aspectos e com peripécias diferentes" - a mesma história, a do confronto do Desejo com a Lei e de sua dialética; e (2) "qualquer filme de ficção, em um mesmo movimento, deve dar a impressão de um desenvolvimento organizado e de um surgimento que só se deve ao acaso, de forma que o espectador se encontre diante dele em uma posição paradoxal: pode prever e não pode prever a continuação, querer conhecê-la e não querer conhecê-la". As ideias aqui postas merecem ser analisadas.

No cinema e na arte de criar narrativas, há sempre de se conviver com essa gangorra formada pelo "mesmo" e pelo "diferente". Ou como trabalhar com o mesmo nas trilhas de um caminho original. Claro que nem todo filme - nem todo livro, série, peça - poderá ser enquadrado segundo essas regras. Estamos aqui, no caso do cinema, sobretudo nos domínios da narrativa clássica e, digamos, "convencional".

O que quero dizer com isso? Um cinema de personagens bem marcadas, de conflitos morais evidentes, às vezes de heróis e vilões, de motivações que se transformam em jornadas físicas e espirituais, preso mais à prosa do que à poesia. Falo, claro, dos filmes que tanto nos acostumamos a assistir e que lotam as salas de cinema.

De um lado temos o conflito do Desejo com a Lei e sua dialética. O desejo transforma, faz as personagens avançarem, cria conflitos, à medida que a Lei freia, pede contenção, pede pela racionalidade nem sempre preponderante. E a dialética produz narrativas e personagens que se posicionam com um pouco dos dois. Exemplos são inúmeros, desde filmes como "Blade Runner" (caçar replicantes, amar uma replicante, ser um replicante) a "Corpos Ardentes" (o crime, a culpa, o castigo), só para ficar em dois exemplos nos quais a dialética é evidente.

Por outro, temos a segunda camada citada por Vernet, na qual tudo fica mais complexo e nebuloso na arte de contar histórias: um equilíbrio entre o desenvolvimento programado e o surgimento inesperado, que leva a elementos que nos fazem reconhecer as situações que envolvem a intriga e outros que nos pedem para que algumas soluções sejam deixadas para depois, em etapas obrigatórias e desvios necessários. Vernet conclui que "o avanço do filme de ficção é, em seu conjunto, modulado por dois códigos: a intriga de predestinação e a frase hermenêutica". O segundo conceito ele retira de Roland Barthes, que é, de forma resumida, um conjunto de atrasos, de etapas-paradas que criam obstáculos na narrativa.

Diferentes autores teorizaram sobre a arte de contar histórias. Tentaram, de diferentes maneiras, "catalogar" e definir caminhos. Continuo acreditando que não existe uma fórmula para se escrever um grande roteiro e penso que roteiros ruins, nas mãos de grandes diretores, podem inclusive gerar grandes filmes - mas, reconheço, são exceções.

Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com; (ramaral@jj.com.br)

Comentários

Comentários