O meu primeiro contato sério com o estudo da medicina tradicional chinesa se deu quando já era um médico formado e estava interessado em aprender como tratar as diferentes doenças.
Apesar do meu conhecimento médico me permitir ir bem a fundo na fisiologia energética e nas possibilidades do tratamento, ele acabou por gerar um viés, uma visão viciosa, que é muito comum no meio terapêutico: acabamos por associar órgãos e vísceras com os seus sintomas de doença mais comuns, como se eles somente se manifestassem quando "algo" não desse certo, quando estão adoecidos.
Desta maneira ocorreram os primeiros estudos com o chamado "ciclo de mutações dos cinco elementos", que é como se chama uma rotina encadeada de transformação, reciclando a energia do organismo e transformando o yin para o yang e vice-versa.
Neste estudo, associamos o movimento chamado "madeira" (um estado de energia) ao órgão fígado e, muito frequentemente, com as emoções deletérias que são formadas quando a energia se acumula neste estágio da transformação: o rancor, a raiva, a frustração.
Como (infelizmente) esses sentimentos são muito frequentes nos dias de hoje, vocês podem imaginar que com igual frequência tratamos o fígado no nosso cotidiano de consultório. Tanto fazemos que acabamos inadvertidamente com a ideia errônea que a energia do fígado e do movimento madeira tem a ver com a raiva com uma frustração com a ira com a mágoa… nada mais equivocado!
Estes sentimentos somente surgem quando a energia se acumula nesse estágio e não consegue dar vazão ao seu potencial por completo, fazendo surgir essas emoções como um produto anômalo da linha de produção, como algo que foi montado, mas com suas "peças" encaixadas de uma maneira incorreta.
Pouco se fala disso nas escolas de medicina, mas a energia do fígado e do movimento madeira é maravilhosa. Dentre as estações do ano ela é associada à primavera, esse período que estamos atravessando agora e, no corpo, tal como é na natureza, ela se trata do triunfo do movimento sobre a inércia parada do inverno. Trata-se do movimento de renascimento da vida e, no ciclo, o estágio onde o yin supremo se rende à semente do yang dentro de si e reinicia sua jornada em direção ao calor, à luz e à esperança.
Então, a energia do fígado, quando livre e direcionada, é uma poderosa energia que inicia a busca e o renascimento da vida, do instinto de viver. Ela é o primeiro passo, que logo se prolonga na energia do coração, dando vazão a sentimentos mais elaborados, todos de intenso relacionamento social (faça a imagem das pessoas que ficam reclusas nas suas casas durante o frio do inverno, mas ao chegar da primavera - a energia da madeira, do fígado - saem para conversar uns com os outros nas cidades).
Na energia do coração surgem os relacionamentos românticos que surgirão a partir do reencontro das energias que outrora estavam recolhidas e inertes. Não podemos esquecer, então que tudo começou (novamente - já que se trata de um ciclo) com a energia da primavera, da madeira, do fígado.
Alexandre Martin é médico acupunturista e com formação em medicina chinesa e osteopatia (xan.martin@gmail.com)