Opinião

Cansados e abatidos

22/06/2023 | Tempo de leitura: 3 min

Ao chegarem as festas juninas, sempre me recordo dela e da filha. Faz tantos anos! Creio que foi em 1969.

Naquela época, eu observava as mulheres que faziam "trottoir" no quadrilátero das ruas Rangel Pestana, São Bento, Barão de Jundiaí e Siqueira de Moraes. Morávamos na Rangel. De início, em 1967, as fitava com curiosidade, numa época em que se falar em sexualidade era raro. Depois, como voluntária, junto a meninas tiradas das famílias ou órfãs, no Educandário Nossa Senhora do Desterro da rua Marechal Deodoro da Fonseca, comecei a ouvir relatos sobre abuso sexual infantojuvenil. Imaginava que as prostituídas, que por ali ficavam, encostadas nos postes, poderiam ter história semelhante. A moça, da qual me lembro, era de aparência desgastada. Vinha no anoitecer. Tentei cumprimentá-la, como fazia com as demais, mas não me respondia.

Numa festa junina em escola tradicional, aberta ao público, avistei-a junto a uma menina, de nove ou dez anos, na barraca de pesca. Pela parecença somente poderia ser sua filha. A menina, apesar de óculos com lentes grossas, tinha dificuldade para pescar os peixinhos que lhe dariam uma prenda. A mãe ajudava, com carinho imenso, e depois a aplaudia como se a vitória fosse dela. Notei, de imediato, o quanto se dedicava à garota. Bonito de se apreciar.

Nos dias posteriores, estava ela pelas calçadas à espera de um freguês. No próximo ano, reencontrei-a com a filha na mesma festa. Queria demais me achegar a elas, contudo poderia me reconhecer e ficar temerosa, pois a menina não saberia, por certo, qual a atividade noturna da mãe.

Passados alguns meses, não veio mais e nem as reencontrei na festa junina. Alimentava ainda a vontade de abraçá-las com carinho.

Sábado, na Missa no Carmelo São José, Dom Vicente Costa, nosso Bispo Emérito, comentou que na vida temos momentos obscuros, que só compreenderemos mais tarde. Disse que até Nossa Senhora os teve, como quando Jesus ficou no templo aos 12 anos. Ela guardava todas essas coisas no coração. Compreendeu mesmo depois da Ressurreição.

Quinze anos após trazer a moça e a filha em minhas preces, nasceu a Pastoral da Mulher - Santa Maria Madalena e iniciamos o convívio com mulheres em situação de vulnerabilidade social. Talvez a moça e a filha que passaram por mim, mas que não consegui aproximar-me, tenham sido essenciais para que eu enxergasse como é grande o amor que elas carregam, embora tão judiadas pelo mundo.

Domingo, na Missa no Santuário Santa Rita de Cássia, o Padre Márcio Felipe, Reitor e Pároco, a respeito do Evangelho da Liturgia do dia (Mt 9, 36-10,8), destacou o coração compadecido do Senhor, ao ver as multidões cansadas e abatidas. Não olhou com afastamento. Olha para nós assim - disse ele - e, além de nos cuidar, convida-nos a sermos sinal de Seu coração.

Disse ainda sobre não julgarmos, pois o Senhor zela por todos com compaixão e sabe, sobre os discriminados, o que os(as) levou a agir desta ou daquela maneira. Olhar com compaixão e colocar-se a serviço dá sentido à vida.

Repetiu o Salmo 99(100): "Sim, é bom o Senhor e nosso Deus, / sua bondade perdura para sempre, / seu amor é fiel eternamente".

Quanta beleza na missão em ser misericórdia, vencendo a miséria, o abandono, a discriminação...

 

Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)

 

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