JOSÉ ANTONIO PEREIRA

Abdias do Nascimento: francano, brasileiro, africano, americano, universal

Peço licença ao senhor Abdias para tecer esta simplíssima homenagem e, como ele próprio fazia, faço-o sob as bênçãos de Exu, o orixá da comunicação.

Por José Antonio Pereira | 14/03/2024 | Tempo de leitura: 5 min
especial para o GCN

Divulgação/Arquivo/Senado Federal

Abdias do Nascimento (1914-2011)
Abdias do Nascimento (1914-2011)

Abdias do Nascimento (1914-2011) completa neste dia 14/03 seus 110 anos. Sim, Abdias está cada vez mais vivo e não morrerá jamais, pois inscreveu sua vida com o cinzel de uma práxis e teoria que formam a base para a construção difícil da real cidadania da comunidade negra brasileira. Suas memórias de vida e militância permitem a derrubada gradual dos muros cujo alicerce foram construídos ao longo de mais de 400 anos em uma sociedade estruturada a partir da escravização de pessoas. Portanto, falar deste francano excepcional passa pela abordagem de temas indigestos que se misturam ao ideológico, quase senso comum, mito da democracia racial brasileira, que até hoje se encontra fortemente marcado no imaginário coletivo e enrijece as tentativas de mobilização dos grupos sociais frente à fundamental questão racial no Brasil.

Ao contar fatos de sua história, Abdias relata que, desde criança, já se indignava com qualquer tipo de injustiça e que, muito cedo, na adolescência, decidiu fazer frente aos resquícios da escravidão impactando a comunidade negra e portanto, à sua vida de menino pobre provindo de cidade interiorana cujas divisões sociais eram fortemente delimitadas. 

Não pretendemos, aqui, trazer detalhes biográficos sobre Abdias, tampouco discutir conceitos e iniciativas por ele levados a efeito. Faremos, mesmo que “en passant”, uma reflexão sobre algumas contribuições de Nascimento para a evolução das políticas públicas de afirmação da comunidade negra e também para a compreensão do racismo estrutural, que desvela descaradamente a realidade da inserção inferiorizante da comunidade negra nas articulações sociais e suas representações multidimensionais nos aspectos educacionais, econômicos, culturais e históricos. Esta é uma ínfima colaboração visando destacar a luta de um dos que passaram, para que permaneçam. É uma tentativa de evitar nossa tão conhecida capacidade de nos esquecermos dos degraus anteriores das escaladas rumo às conquista. 

Sabemos que, para se fortalecer a caminhada, há de se considerar os que vieram antes; dentre eles, Abdias do Nascimento, que permitiu com suas ações, um maior engajamento da comunidade negra atual e sobretudo dos jovens, frutos das ações afirmativas e políticas públicas correntes, que possibilitam a reconstrução da história do ser humano negro no Brasil e no mundo. Os reflexos de uma história inventada, contada do ponto de vista dos opressores, forjou uma subjetividade inferiorizada que será modificada pelo desvelar da verdadeira história e a conseqüente valorização da trajetória do negro no Brasil e no mundo, bandeira por Abdias empunhada.

Assim, em se falando de história, queremos destacar, particularmente, a criação da Lei 10.639/03, que torna compulsório o ensino de história e cultura afrobrasileiras nas escolas de ensino fundamental e médio. Esta, sem nenhuma dúvida, é uma conquista que se dá como reflexo da anterior luta de Abdias do Nascimento e outros militantes. Consideramos este, um grande avanço dentre os muitos que ainda precisam acontecer, pois compreendemos que a Educação possui papel decisivo na modificação da mentalidade da população mais pobre e discriminada e portanto, negra. 

É necessário reconhecer que a nascente que permite este desaguar de inúmeras percepções e ações afirmativas atuais no campo das políticas públicas, brota, também, deste trabalho de Nascimento, ao remexer o solo aparente das ideologias em busca das raízes mais profundas que expliquem o nascimento das ervas daninhas que deverão ser arrancadas gradativamente por todos os interessados por um solo fértil que alimente de maneira igualitária a todos os que têm fome de justiça, respeito, direitos e deveres, como qualquer cidadão reconhecido como tal.

Percebemos que as denúncias de Abdias do Nascimento, algumas constantes de sua obra literária, como por exemplo O genocídio do negro brasileiro, cuja primeira edição data de 1978, trazem consistência a esta teia de influências a favor da compreensão e da prática da luta antirracista no Brasil. Dentre outros, os conceitos de Panafricanismo, para o qual a contribuição de Abdias foi imensamente significativa e o Quilombismo, por ele proposto e explicitado como organização social e política, estruturam um pensamento, resgatam a história e apresentam práticas que elevam as referências negras brasileiras para além do folclórico, evidenciando um pensamento sólido que promova uma sociedade mais igualitária e consciente. Atualmente, a luta “abdiana” tem possibilitado uma maior centralidade das questões raciais no Brasil resgatando uma memória propositalmente apagada na tentativa (bem sucedida) de reforçar a ideia da inferioridade inerente a algumas raças, a negra, principalmente. Quanto mais estudo sobre Abdias do Nascimento, mais me encanta esta genialidade de quem pensava para além do aparente e do, já socialmente e intelectualmente, posto. 

Sou obrigado a confessar que meus conhecimentos sobre Abdias eram (e, de certa forma, ainda são, devido à vastíssima obra e atuação) elementares e não ultrapassavam os limites do socialmente permitido pela estruturação racista de nossa cultura. Daí, compreende-se a necessidade de que a luta pelo reconhecimento dos heróis negros brasileiros e mundiais contemple direitos de, por exemplo, dar-se o nome de Abdias do Nascimento à Casa da cultura e do artista francano. Foi assim que fui eu, me interessar mais por esta personalidade que, inclusive, recentemente, foi inscrito no Livro dos Heróis da Pátria, no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, em Brasília. Estes são reconhecimentos necessários para uma sociedade que tem sua memória ancestral e atual fragilizada pelo desmerecimento, naturalizado e justificado, direcionado aos negros, chamados de “escravos”, ressaltando uma condição de inferioridade que chegou a ser “cientificamente” defendida. Hoje alegra-me a utilização do termo “pessoas escravizadas” em vez de “escravos”; pequenos conhecimentos e mudanças conceituais que fazem a diferença para a subjetividade dos indivíduos negros e lançam nova perspectiva para a sociedade em geral.

Abdias é mundialmente considerado uma das maiores personalidades da metade do século XX e início do XXI. Talvez o maior ativista e intelectual do movimento negro brasileiro, até o momento. Falar sobre Abdias é, essencialmente, discorrer sobre a luta social empenhada pela população negra. Luta ferrenha, política, travada em época de repressão ditatorial e pós-guerra mundial. Para nós, hoje, vale conhecer esta personalidade ímpar, reconhecer sua importância para o desenvolvimento do país e, quiçá, juntarmos forças na luta contra a desigualdade, desvelando e revelando a história contada pelos opressores e, portanto, cheia de vieses que intencionam deixar os indivíduos no desconhecimento e passividade provindos das consciências amansadas. Parabéns Abdias do Nascimento. É um imenso orgulho para mim e, penso eu, para qualquer francano cuja consciência não se encontre obnubilada pelos preconceitos, frutos, basicamente, da ignorância e do apagamento historicamente engendrado.

José Antonio Pereira ocupa a cadeira de número 09, na Academia Francana de Letras, tendo como patrono, Abdias do Nascimento. 


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1 COMENTÁRIOS

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  • Edmilson Sanches
    14/03/2024
    Se é francano e brasileiro , não é africano. Achar que todo afgricano é negro e todo negro é africano é uma completa falta de conhecimento e preconceito. Abdias do Nascimento é um brasileiro , descendente de alguma nação do continente africano. Eu sou brasileiro, descendente de italiano e espanhol, e nem por isso sou tratado como europeu.