NOSSAS LETRAS

Compaixão

Por Lúcia Helena Brigagão | 20/05/2023 | Tempo de leitura: 2 min
especial para o GCN

Intensos, significativos, atrozes, pragmáticos, intrigantes, didáticos, maravilhosos e exemplares acontecimentos da minha vida estão concentrados em anos do final do século passado, embora outros tão igualmente importantes, expressivos e também excitantes, tenham ocorrido em praticamente todos os anos, da minha vida inteira.  Destaco, porém, duas situações nas quais entrei em contato com a dor alheia, aprendi a respeitá-la e, espero, tenha ajudado com minha cumplicidade e compaixão. Ambas estão distantes, mas foram inesquecíveis.

Final de tarde, conhecida e prestigiada figura francana entrou na minha loja. Chorava copiosamente. Trazia com ele absurdo toca-fitas, que colocou na mesa. Balbuciava frases desconexas, mas entendi que me pedia para escutar determinada música. Passado o susto, breve instante da música escorrendo até reconhecê-la, ele, engasgado pela emoção, relatava seu drama: a separação da mulher que amava, a dor do abandono, da preterição, a insegurança de não saber para onde ir depois do trabalho. Foram sempre e tão felizes! Por que ela havia pedido a separação: eu poderia explicar? Chorei com, e tanto, quanto ele. Calada, só ouvi, jamais enfrentara situação tão dramática, não éramos tão íntimos e eu, inexperiente. Como me atreveria a dar algum palpite? Foi quando entendi, de verdade, o sentido de compaixão. Com paixão eu o ouvi em silêncio, segurei sua mão. Fui cúmplice pelo tempo que lhe restou de vida: outras vezes nos encontramos, mas ele jamais tocou no assunto. Quando morreu, chorei de verdade, mas acredito que de alívio: suas dores de amor devem ter se encerrado naquele dia. Julio Iglesias continua por aí e quando escuto Hey, ainda me emociono. Era a trilha sonora da dor do meu confidente. 

Na mesma época, outro amigo, homossexual, dizia não se importar muito com os falatórios sobre sua condição, embora sofresse com certa repressão e alguma reprovação social. Fez força para ser feliz e, de certa forma, foi vitorioso em sua curta vida. Criatura do bem. Cercado de bajuladores e aproveitadores, embora os reconhecesse, achava graça em pensar que eles acreditavam que o estavam enganando.  Certa vez, à guisa de cortejo, presenteou o paquera com possante moto. O rapaz, sem prática ou habilidade, não dominou a máquina. Acabaram ambos sob veículo mais poderoso. O enterro foi acompanhado por maledicências e acusações.

Passava por seu local de trabalho quando ele literalmente pulou na frente do meu carro. Parei, ele entrou e me pediu para levá-lo dali. Fui parar nos confins da cidade, num local isolado.  Ele desceu, pôs as mãos no rosto, curvou-se e uivou. Urrou. De dor, de saudade, de vergonha, de tristeza, acho que de arrependimento. Toda a emoção que escondera e encolhera, botou para fora naqueles minutos. Novamente, doloroso momento de experimentar cumplicidade e compaixão.  Entrou no carro, me sorriu tristemente, não disse  palavra. Voltamos. Ele nunca tocou no assunto, nem mais falamos daquela experiência. Fomos amigos até sua morte.

Quando morrer, se for parar no céu, terá sido por conta dessas duas situações.

Fale com o GCN/Sampi! Tem alguma sugestão de pauta ou quer apontar uma correção?
Clique aqui e fale com nossos repórteres.

Receba as notícias mais relevantes de Franca e região direto no seu WhatsApp
Participe da Comunidade

COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.