SONIA MACHIAVELLI

Escravidões

Em mais de mil cidades brasileiras, Franca incluída, hoje é feriado. Celebra-se neste sábado o Dia da Consciência Negra. A data resgata e reverencia Zumbi, cuja coragem, liderança e amor à liberdade o alçaram ao patamar dos heróis. Sua história é mesmo pungente.

Por Sonia Machiavelli | 20/11/2021 | Tempo de leitura: 4 min
especial para GCN

Em mais de mil cidades brasileiras, Franca incluída, hoje é feriado. Celebra-se neste sábado o Dia da Consciência Negra. Criado em 1978 em Salvador, no congresso do Movimento Negro Unificado, só em 2011 seria oficializado por meio de decreto. A data resgata e reverencia Zumbi, cuja coragem, liderança e amor à liberdade o alçaram ao patamar dos heróis. Sua história é mesmo pungente.

Aos 15 anos, fugido de senhores brancos, chegou ao quilombo de Palmares, criado por Ganga Zumba no meio da mata. Por quinze anos esteve à frente do maior dos quilombos, com uma vida organizada, produção de alimentos e divisão de tarefas. Zumbi dos Palmares, reza a lenda, preferiu morrer a se entregar, e se atirou num precipício quando as forças do governo destruíram o quilombo.

Conta a história que o reduto foi arrasado em 1694 por expedição comandada pelo mais cruel dos bandeirantes, Domingos Jorge Velho. Este capturou Zumbi, a quem manteve preso por um ano, até decidir-se por sua morte em 20 de novembro de 1695. Decapitado, Zumbi teve a cabeça exposta numa praça do Recife. Decapitar cabeças era simbólico: significava punição a quem desobedecesse ordens da Metrópole. Antes já haviam caído algumas; depois seria a vez de outras. Assim foi se tingindo de sangue a história do Brasil.

Homenagem e reconhecimento da luta de Zumbi e seus companheiros de Palmares, o Dia da Consciência Negra torna-se relevante mais do que nunca para evidenciar as desigualdades e violências contra a população negra do Brasil. Há ainda, em pleno século 21, muito racismo entre nós, e negar isso é compactuar para que ele permaneça.

O escritor Laurentino Gomes, autor da excelente trilogia “Escravidão”, tem lembrado que “o nosso passado escravocrata manteve os negros na pobreza no Brasil, e requer segunda Abolição.” Entrevistado pelo jornal “O País”, por ocasião do lançamento de seu livro na Espanha, disse que “se você quiser entender o Brasil em uma dimensão mais profunda, precisa estudar a escravidão. Tudo o que fomos no passado, o que somos hoje, o que gostaríamos de ser no futuro, tem a ver com a escravidão”.

Pensei nessas palavras, no livro, na data de hoje e nos dias atuais ao assistir ao filme “7 Prisioneiros”, recém-lançado pelo canal Netflix. Se muitos dos africanos trazidos para a América foram aliciados mediante promessas de vida menos miserável do que a levada em sua terra, o mesmo acontece com jovens do interior paupérrimo do nosso país, engambelados por homens brancos, que aparecem em suas casas convidando-os ao trabalho bem remunerado, com carteira assinada, numa cidade grande. Na periferia onde a miséria cresceu a ponto de a comida ser insuficiente, isso parece um sonho.

Pensando em suas mães, em lhes proporcionar uma vida menos difícil, esses jovens aceitam o emprego e chegam juntos a um barracão de sucata, onde entregam ingenuamente os documentos para aquele que se revelará seu algoz. A partir daí, o espaço se transformará num protótipo de senzala, da qual será impossível escapar, apesar de tentativas desesperadas. A péssima comida é racionada, catres sujos servem de cama, não há remuneração pelo pesado serviço. O chicote é substituído por arma de fogo. Bem rápido eles percebem que caíram numa armadilha onde trabalho e bom salário representaram a isca tentadora.

O filme é excelente produção brasileira, prova de que o cinema nacional cresceu apesar da pandemia. Dirigido por Alexandre Morato, tem no papel do explorador Luca, Rodrigo Santoro, cujo desempenho em outros trabalhos o inserem no rol dos grandes atores brasileiros. O explorado Matheus é nome desconhecido mas que ganhará relevância a partir de agora, com certeza: Christian Malheiros. Com dez milhões de horas assistidas na primeira semana de lançamento o filme está mostrando para quem quiser ver que há outros tipos de escravidão no país.

Tendo existido desde o início da história humana, e atingido escala industrial com o tráfico negreiro, a escravidão ainda persiste na nossa sociedade. A ver. Nas áreas rurais onde desempregados arrebanhados em regiões urbanas miseráveis são obrigados a trabalhar do nascer ao pôr do sol no campo, em condições precárias e sem remuneração. Nas grandes cidades às quais garotas são levadas a se prostituir em recintos dos quais não conseguem sair. Nos minúsculos apartamentos onde imigrantes orientais são trancafiados e obrigados a costurar roupas até cair de exaustão. São novos tipos de escravidão do qual precisamos nos lembrar também hoje; e falar, escrever, comentar, combater. O tráfico de gente continua, com outros nomes e vestimentas. Mas é tráfico. É supressão de liberdades. É exploração do homem pelo homem.

É enfim versão atualizada de uma frase que o filósofo Thomas Hobbes (1588-1679) inseriu no clássico “Leviatã”: “O homem é o lobo do homem”. As palavras, entretanto, são tradução do latim, autoria do dramaturgo romano Plautus (254-184 aC). Como se vê, é bastante antiga a percepção da capacidade destruidora do ser humano contra os seus. A metáfora que associa animal e homem perfila este como explorador por excelência, aproveitador dos mais fracos, usurpador do que pertence ao outro, com pouco ou nenhum interesse pelo bem coletivo. Um grande predador de sua própria espécie.

Nossa evolução é lenta.

A oração, metafórica, quer dizer que o homem é um animal que ameaça a sua própria espécie.

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