Eram 7h45, quando a primeira leva partiu para o ataque. Apoiados sobre mecanismos de duas rodas, alguns não muito convencionais, havia uns 250 integrantes. Pouco tempo depois, 15 minutos, o segundo pelotão partiu. Também não era muito uniforme, composto por uns seres meio estranhos, mas empenhados na missão. Por fim, na investida final, o grande regimento, formado por batalhões de crianças, cinquentões, casais, adolescentes, senhoras sexagenárias, moças de salto plataforma e gente que já partiu esbaforida só de pensar nos dez quilômetros que os separavam do alvo.
No domingo, Franca invadiu Restinga pela 24ª vez. A população da cidade vizinha viu a turba de mais de 15 mil pessoas, que quase a triplica, chegar aos montes pela Avenida Azarias Martins.
Ao contrário de outras invasões, esta é bem aceita. Tanto que moradores anteciparam o churrasquinho da família, gente apareceu nas sacadas dos sobrados. O senhor colocou a cadeira na calçada para ver o movimento incomum. Até os cachorros, meio aturdidos, não entendiam o que estava acontecendo na pequena comunidade de seis mil moradores.
O passeio que liga as duas cidades foi uma festa, premiada pelo sol e a temperatura agradável da manhã de domingo, que tirou muita gente da cama antes da hora. Não há números confiáveis, mas a multidão começou a se formar muito antes das sete horas. No horário anunciado pelos organizadores para a partida, a Avenida Severino Tostes Meirelles, no Bairro São Joaquim, já estava repleta. Democrático como poucos eventos realizados em Franca, terminou como começou: sem nenhum incidente, ressalvando os deslizes da organização e um cãozinho que desmaiou de sede e cansaço no acostamento da Rodovia Nestor Ferreira.
OS PRIMEIROS
Ciclistas eram insistentemente convidados a se agrupar para a partida. Dezenas deles já haviam se aproximado da linha demarcada para a largada, e outros tantos ainda eram vistos chegando de todos os lados. Ao lado dos modernosos e esportistas com suas máquinas de 21 marchas e freio a disco, outros bem menos pretensiosos os acompanhavam com a mesma desenvoltura, sobretudo, adolescentes e homens. Famílias inteiras subiram nas magrelas, enquanto um senhor pedalava elegantemente sua Wanderer Continental, alemã, da década de 40, com seu selim de três molas, feita de ferro. Robusta como um tanque de guerra.
Atrás dele, surgiram cinco malucos que chegaram a Restinga sobre monociclos no melhor estilo circense, parando e fazendo manobras.
Mas, nada era mais marcante, e irritante, que as buzinas instaladas nos quadro das bicicletas. De adolescentes, é claro. Havia todo tipo de som. Buzina com latidos, sirenes, 9ª sinfonia de Bethoven, galos e com barulho de buzina mesmo.
Mancada número 1: as músicas davam o tom da animação nos trios elétricos, mas bem que as esfuziantes vozes podiam ter dado uma força, substituindo em um momento ou outro os axés, e ajudando a difundir o uso de capacete entre os ciclistas, regras de convivência com pedestres, além de outros itens de segurança. Passou.
Minutos depois das bicicletas foram os corredores. Um grupo menor, comparado ao anterior. A reportagem não os acompanhou nesta etapa. A forma física do repórter e do fotógrafo não permitiu tal façanha.
MULTIDÃO A PÉ
Quando a locutora do caminhão de som deu sinal verde para os pedestres abrirem sua jornada, muitos já tinham partido por conta própria. Uma mancha formada por milhares de pessoas se estendeu imediatamente.
Havia um misto de perdidos com gente interessada em tornar a caminhada um pouco mais esportiva. Moças com calças de lycra e tênis para caminhada estavam lá. Mas, estavam também uns tipinhos que pareciam ter estendido a balada. Não foi raro flagrar belas e produzidas mulheres em saltos plataforma, jaquetas jeans e micro bolsas penduradas no ombro. Neuzimar de Fátima e Nilzelina, irmãs, eram dessas, mas garantiram que não iriam percorrer todo o passeio. Também não estavam pagando nenhuma promessa, como disseram. “Vamos até ali na frente”, indicaram, um pouco envergonhadas com a abordagem.
Certos de que teriam pelo menos duas horas pela frente, alguns, não muitos, aproveitaram para pôr a leitura em dia. Caso de Lívia Siabatti, 17, que não desgrudava os olhos da revistinha de fofocas da TV, querendo entender o destino de Bia Falcão, personagem de Fernanda Montenegro na novela Belíssima, da Globo.
Mancada número 2: Quem se lembrou de comprar ou trazer de casa uma garrafinha de água, garantiu a hidratação. Mas, quem confiou na organização teve que suportar oito quilômetros até que um cano da Sabesp servisse de bebedouro. Pouco antes, no sentido do passeio, um caminhão oferecia água de qualidade duvidosa.
Contrastes naturais, típicos de uma atividade em que todos participam, aconteciam a todo instante. Como quando juventude e velhice encontram-se lado-a-lado, seguindo o mesmo caminho.
Fernanda, Stephania, Hellen e Jenifer, como os nomes denunciam são jovens, crianças. A mais velha tem doze anos. Fernanda tem oito e há três participa do passeio com os pais. Tagarelas o tempo todo, para elas o passeio Franca-Restinga era diversão.
Perto delas, não com menos disposição, as amigas Dirce de Carvalho, 59, e Valentina Murari, 57, moradoras do Jardim Vicente Leporace, não perdiam o passo. Valentina estava no primeiro passeio; Dirce, no terceiro. Sorriso no rosto, foram embora, já que o médico tinha recomendado exercício. Falando com a reportagem, nem puderam ver os meninos de Restinga, uns 12, que vieram até o metade do caminho. Usavam gravatas e, segundo eles, faziam parte da turma que leva o nome do acessório.
Para quem após quatro ou cinco quilômetros já estava torcendo para ser resgatado, Carla Patrícia, 11, Carolina, 5, e Natália, 8, davam um show, caminhando descalças, devidamente acompanhadas pela vira-latas Titã, elétrica companheira de atividade.
Mancada numero 3: Mais uma vez, a organização poderia ter distribuído sacolinhas para o lixo formado por garrafinhas de água e pacotes de bolacha, que foram deixando um rastro de sujeira pela rodovia. Nem sacolinhas, nem orientação para não jogar nada no chão.
A CHEGADA
Os caminhantes estavam chegando em Restinga, quando os ciclistas já faziam o caminho de volta. Na entrada da cidade, perto das 10 horas, a população saiu para ver aquele movimento todo. Entrando pela Avenida Azarias Martins, encerraram o passeio na praça da Igreja Matriz. Pela disposição, parece que iriam bem mais longe.
Para os moradores, é a chance que a cidade tem de mudar o cotidiano pacato, pelo menos por um dia. “Para mim, o barulho pode continuar que não esquento; gosto muito”, disse o aposentado José Pinheiro, 65, no banco da praça.
Quem deve ter gostado, também, foram os comerciantes. Por onde encontravam alguma porta que significasse água, refrigerante ou sorvete, as pessoas entravam sedentas.
Foi o caso da Casa de Lanches Restinga que, talvez, tenha vendido “cheeses qualquer coisa” equivalentes ao mês inteiro. Em pouco tempo, só sobrariam refrigerantes de limão. A digestão incluía a apresentação da dupla Bhyll e Jhonny, interpretando “homem que é homem não precisa de um harém” ou “Renata, sua ingrata, trocou o meu amor por uma ilusão”. Houve também “Festa no AP”. Nada que incomodasse Oneide de Araújo, que pelo enorme desgaste sofrido na caminhada, repunha as energias com uma bela tábua de carne picada com mandioca, acompanhada de cerveja gelada, porque ninguém é de ferro.
“Vou voltar a pé para Franca”, disse. “Boa sorte”, desejou a reportagem, que voltou de caminhão, já que imitar o gesto de Oneide não estava nos planos. Até o ano que vem.
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