OPINIÃO

Ninguém é, torna-se

Por Roberto Magalhães | O autor é professor de redação e autor de obras didáticas e ficcionais
| Tempo de leitura: 2 min

Frases há que vêm para dizer; outras nem precisavam vir. Olha essa: "Não se nasce mulher, torna-se." É da filósofa e feminista Simone Beauvoir. Perfeita. Obriga a pensar. Epifania, poesia em iluminada revelação. Se a mulher nascesse mulher, ela teria nascido acabada, nada mais teria a fazer. Era só cumprir o seu papel de mulher: pensar assim, comer assim, vestir-se assim, dançar assim e o resto assim também, porque decidido estava que ela assim devia ser. E pior que está.

A boca enorme tem língua comandante determinando como devemos marchar. Cospe caminhos feitos, dizendo "venha por aqui." A vida deixa de ter sentido quando os aceitamos e os cumprimos sem a necessária reflexão. Ao usar o verbo "tornar-se", Simone evidenciou liberdade de cada pé.

Mostrou que a mulher - o homem também - deve ser respeitada na sua liberdade de se construir, de "tornar-se" o que quiser. Alberto Caeiro, heterônimo de Pessoa, diz exatamente a mesma coisa como gênio que foi: "Procuro despir-me do que aprendi. Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, desencaixotar minhas emoções verdadeiras. Desembrulhar-me, ser eu."

Eis o dilema, ser ou não ser. Desembrulhar-se ou continuar embrulhado? Para "tornar-se" é preciso ter a coragem de se limpar de todos preconceitos, valores distorcidos, "verdades" esclerosadas que foram, ao longo do tempo, grudados em nossa pele. Libertar-se exige esse banho necessário para se reconectar com a essência das emoções verdadeiras.

É preciso saber dizer não. A poesia do poeta português José Régio disse exatamente o que disse Simone e Pessoa: "Não vou por aí! Só vou por onde me levam meus próprios passos (...) Prefiro escorregar nos becos lamacentos, redemoinhar aos ventos, como farrapos, arrastar os pés sangrentos a ir por aí. (...)Não sei por onde vou, não sei para onde vou. Sei que não vou por aí." Um pouco mais de Régio: "Se vim ao mundo, foi para desflorar florestas virgens, e redesenhar meus próprios pés na areia inexplorada. O mais que faço não vale nada." Tornar-se é preciso.

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