Fora dos livros escolares, existem histórias não edificantes sobre o Grito do Ipiranga. Uma delas entrelaça o romance de D. Pedro I com a Marquesa de Santos, a paulista Domitila de Castro Canto e Melo, ambos casados, mas não entre si. "É a grande história de amor que serve de moldura à Proclamação da Independência do Brasil" - comenta Laurentino Gomes, no seu livro-reportagem "1822".
Outra construção mitológica na história oficial da Independência é o quadro que celebra o Grito do Ipiranga. A obra de Pedro Américo, que está nos livros didáticos, pode ser vista no Museu do Ipiranga. O príncipe aparece montado em um belo cavalo baio com uniforme de gala. Naquela época, subia-se a Serra do Mar em lombo de burro, pela íngreme Calçada do Lorena. Em muitos trechos, só a pé puxando os "caramelos" pelas rédeas. Os viajantes vestiam trajes de briga para atravessar charcos e espinheiros. A guarda de honra que aparece na tela, exibe uniformes dos "Dragões da Independência" que seriam desenhados muitos anos depois. Hoje, veste a guarda do Presidente da República, em dias de gala.
O quadro de Pedro Américo, que dá dimensão grandiloquente ao brado de Independência ou Morte, é uma cópia quase idêntica de outra obra famosa, do francês Messonier (1807), feito para celebrar uma vitória do imperador Napoleão Bonaparte. Está, hoje, no Metropolitan Museum, de Nova York.
O príncipe, depois coroado D. Pedro I, Imperador do Brasil, interrompeu sua viagem pela enésima vez junto ao Riacho do Ipiranga, "para se aliviar de uma indisposição intestinal". Tinha um apetite voraz, segundo a inglesa Maria Graham, escritora e amiga. Conta que o prato preferido dele era "um pedaço gorduroso de carne de porco ou de boi com arroz, batata e abóbora cozida - tudo misturado no mesmo prato". Para cortar a carne era uma batalha, mesmo para facas de aço damasceno.
Machado de Assis, numa crônica de 1876 escrita para a "Gazeta de Notícias", do Rio, conta que um "ilustrado amigo paulista", uma vez reclamou das lendas criadas para se contar a história da separação do Brasil de Portugal. "Não houve Grito nem Ipiranga. Houve algumas palavras, entre elas Independência ou Morte - as quais todas foram proferidas em lugar diferente das margens do Ipiranga".
O conselho do Bruxo de Cosme Velho ao amigo foi para diminuir a distância entre o real e o imaginário. A lenda é melhor do que a história autêntica. A lenda resumia todo o fato da independência nacional, ao passo que a versão exata o reduz a uma coisa vaga e anônima. "Tenha paciência meu amigo. Eu prefiro o Grito do Ipiranga, é mais sumário, mais bonito e mais genérico" - escreve Machado.
Lembra o clássico de John Ford, "O Homem que Matou o Facínora", de 1962. O filme revela todas as contradições inerentes ao processo histórico e a desconstrução do mito. O homem que a população de uma pequena cidade pensava ter matado o bandido que a atormentava, na verdade foi outro pistoleiro, escondido atrás de uma casa. O personagem de John Wayne foi o verdadeiro justiceiro, mas o status de herói ficou para James Stewart, no papel de um paspalho incapaz de dar um tiro, quanto mais de eliminar num duelo o impiedoso matador profissional. Muito anos depois, o jornal da terra quis botar as coisas nos devidos lugares. Bobagem, concluiu o editor. "Quando a lenda vira fato, imprima-se a lenda".
Quando não se fica nem com a lenda e nem com a realidade, o resultado é muito pior. O ex-presidente Jair Bolsonaro, resolveu fazer das comemorações do Bicentenário da Independência, um palanque político na campanha eleitoral de 2022. Acabou declarado inelegível até 2030 pela Justiça, por abuso do poder econômico. Também foi condenado por abuso do poder político, ao propagar teorias da conspiração sobre urna eletrônica, em reunião com embaixadores. Bolsonaro obteve 49,10% dos votos válidos no segundo turno e Lula, 50,90%. O Mito perdeu.
O autor é jornalista.