OPINIÃO

Abriram a porta do inferno

Por Zarcillo Barbosa |
| Tempo de leitura: 3 min
O autor é jornalista

A diarista, ao receber a paga pelo seu trabalho, pediu um adiantamento sobre a próxima faxina. Perdera dinheiro que não era seu numa bet e precisava pagar.

Tem razão a deputada Gleisi Hoffmann, presidente do PT, quando disse ao saber que 20% do Bolsa Família vai para os jogos de sorte (ou de azar): "É como se a gente tivesse aberto as portas do inferno. Não tínhamos noção do que isto poderia causar".

Segundo o Banco Central, os brasileiros gastaram R$20 bilhões e 800 milhões em bets, somente em agosto. Todos os sorteios e loterias da Caixa não passaram de R$1,9 bilhão arrecadados. Na semana, o presidente Lula determinou a proibição de apostas a débito do cartão do Bolsa Família, quem sabe por ignorar que as apostas são feitas pelo pix. O fato comprova que existe uma renda extra entre os beneficiários para se ocupar desse viciante tipo de entretenimento. A maioria dos apostadores (86%) tem dívidas e grande parte (64%) estão com no nome sujo. Até crianças jogam pelo celular.

A ludopatia, que é o transtorno pela dependência de jogos, já tomava conta de todas as classes sociais na metade do século passado. Para dar conta dessa necessidade patológica surgiu o jogo do bicho, hoje um patrimônio sociocultural brasileiro. Além do tigrinho, tem leão, cobra, veado, burro...

Jogo existe no mundo inteiro. Na Inglaterra aposta-se até nos minutos de acréscimo que o árbitro vai dar no fim do jogo. Mas, é dever do Estado proteger o consumidor para que não se torne um jogador patológico. Há regras rígidas e a própria empresa de apostas é obrigada a vigiar os compulsivos. Para além dos danos sociais do superindividamento há danos psíquicos à saúde do apostador. Lá na Inglaterra o NHS (National Health System), que o SUS brasileiro copiou na universalização da saúde, está equipado para lidar com esse problema.

A psicopatologia do jogo é descrita por Dostoiévski em O Jogador. O personagem, Aleksei Ivánovitch, jovem inteligente, crítico do mundo, mas carente de objetivos, desenvolve uma paixão compulsiva pelo jogo - vício que acometeu o próprio escritor. O descontrole, o desespero que beira a loucura deixam o leitor chocado e sem saber se tem dó ou raiva do idiota que tinha tudo para ter uma vida de sucesso.

Enquanto isso, em terra brasilis, a Caixa Econômica volta com a raspadinha, depois de 9 anos fora do mercado. São aqueles bilhetes físicos com números ocultos. A CEF anuncia, para breve, uma versão digital, possível de se "raspar" pelo celular.

A intenção do governo é a de arrecadar. Há um enorme déficit orçamentário pela frente e o dinheiro tem que vir de algum lugar. Mesmo que seja da desgraça alheia.

Quando o jogo se torna uma atividade compulsiva viciante, causa prejuízos emocionais, sociais e financeiros. Há quem ache que não é papel do Estado eliminar comportamentos nocivos à saúde dos indivíduos. O Estado-babá, que os ingleses chamam de walfare-state, foi um sonho do Capitalismo. Lembra o coronel Tamarindo, comandante que berrava aos comandados em debandada na Guerra de Canudos: "Em tempo de murici, cada um cuida de si". Embora não tenha a atenção que merece das autoridades de saúde pública, é uma doença que pode destruir vidas e famílias.

Até concordo que as bets tenham que ser legalizadas. Mas com regras rígidas. O jogo está servindo para lavar dinheiro do narcotráfico e dos negócios ilegais. O governo tem que acompanhar a evolução dos prêmios pelo CPF de cada apostador. Quem aposta muito e ganha pouco está com dependência psicológica, quem aposta pouco e ganha muito está geralmente lavando dinheiro.

Para minorar o mal, já que não se pode extirpá-lo, que o governo exija campanhas preventivas, proíba propagandas e alerte sobre os riscos, como se fez com o tabaco. E impostos neles, com finalidade sociais.

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