OPINIÃO

A vida acaba na janela

Por Roberto Magalhães |
| Tempo de leitura: 2 min
O autor é professor de redação e autor de obras didáticas e ficcionais

Tenho 96 anos e adoro conversar. Sempre tive a língua solta, é uma coceira que não sei explicar. Meu marido tem 90, mas está velho demais. E o pior é que ele, agora, não quer mais conversar. Também não é assim, ele até que gostaria, mas está surdo como uma porta. Mesmo assim surdo, eu acho que ele devia conversar comigo. A gente sempre foi agarrado um no outro, parceiro de muita conversa fiada e até de gargalhada. Agora ele passa o dia inteiro olhando o céu e a vida que passa embaixo da janela.

Já esqueci até como é a voz dele. Gente, como eu posso aguentar uma vida assim? Só nós dois e as paredes, essa casa virou um cemitério antecipado. Eu compreendo o problema dele, mas ele não compreende o meu. Só quero conversar pô! Não faço questão que ele me escute, basta que ele me deixe falar. Se ele fosse compreensivo, mesmo não escutando nada, ficaria perto de mim quando eu estivesse falando com ele. Não fica. Logo que eu começo, ele, puto da vida, bate a porta e vai sentar no banco da praça. Lá tem um monte de velhinhos jogando baralho, dominó, contando lorotas, dizendo que ainda fazem o que já esqueceram como se faz. Mas ninguém chega perto do meu velho e do banco dele não. Não sei se por respeito ou se porque, com jumento surdo, só mesmo um louco muito pirado, ia querer prosear. E eu como fico nessa história? Eu morro de fome de conversar. Minhas irmãs e minhas amigas morreram todas. Gente mais nova não tem a mínima paciência de o velho escutar. Vivo mendigando um dedinho de prosa aqui, outro ali. Os filhos aparecem de vez em quando, trazem um bolo e um monte de ordens bravas que a gente tem que ouvir e obedecer.

Nesse momento, eu invejo a surdez do meu velho na janela com os olhos perdidos na imensidão azul. O que será que ele tanto procura lá e não acha? Quando me aparece uma alma boa, eu me animo, mas logo vem a desculpa de estar atrasada e de que não que não pode mais ficar. Engraçado, essa gente tonta sempre me perguntando se eu não tenho medo da morte. Claro que não. A morte tem valor diferente pra cada um. Pra mim, a vida não vale muito não. A única coisa que eu tenho medo é de ficar maluca ou, como as pessoas dizem, demente da mente, e não poder mais conversar. Ai sim, vai ser o meu fim. Será? Vai nada! É só um modo de falar. Vou ter que arrumar um jeito de a vida me levar.

Vou pedir pro meu velho um cantinho na janela e, se ele deixar, vou ficar segurando a mão dele e, olhando com ele a imensidão do azul, até a nossa vidinha acabar.

Comentários

Comentários