ENTREVISTA JC

Entrevista da Semana com o médico bauruense Erick Oliveira Pereira

De origem humilde, em meio a adversidades, ele conseguiu formar-se médico há dez dias e, neste sábado, passa a trabalhar na rede municipal

Por Tisa Moraes | 02/07/2023 | Tempo de leitura: 5 min
da Redação

Larissa Bastos

Erick defende políticas públicas para jovens com a mesma origem que a dele
Erick defende políticas públicas para jovens com a mesma origem que a dele

EDUCAÇÃO COMO REMÉDIO
Foi com incrível obstinação, em meio a muitas adversidades, que Erick Oliveira Pereira, 29 anos, conseguiu formar-se médico, há dez dias, em Bauru. Como jovem 'preto, gay, pobre e abandonado pelo pai na pré-adolescência', conforme ele descreve, apoiou-se em uma rotina disciplinada e na força da mãe, Ivonice, que já trabalhou na roça e hoje é cozinheira, para superar todos os obstáculos que a vida lhe impôs.

Nascido em Bauru, passou a alimentar o desejo de cursar medicina ao identificar sua vocação para cuidar do próximo. Aluno formado pelo Colégio Técnico Industrial (CTI) da Unesp, estudou de 12 a 14 horas por dia, durante dois anos, sabendo que só teria condições de realizar seu sonho se fosse aprovado em uma universidade pública.

Porém, em 2017, a recompensa veio, quando ele foi selecionado para ser bolsista do curso de medicina da Uninove, dentro de uma contrapartida exigida pelo programa Mais Médicos. Por uma feliz coincidência, a notícia foi dada no dia do seu aniversário, na casa onde vive com a mãe, a avó Maria de Lourdes e a irmã Érica, no Parque Viaduto. O momento foi registrado pelo Jornal da Cidade, à época.

Ao se formar, Erick rompe um ciclo de gerações, ao ser o primeiro da família a concluir o ensino superior. Já aprovado em concurso público da prefeitura de Bauru, agora, além de praticar medicina humanizada e inspirar outros jovens como ele a batalharem por seus sonhos, ele se lança a um novo desafio: fazer residência médica. Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista.

JC - Como foi sua infância?
Erick - Foi conturbada, meu pai causava muitos problemas. O ambiente doméstico era hostil. Além disso, minha família mudava de casa frequentemente, o que me impediu de construir vínculos de amizade. Já moramos de favor na casa dos meus tios, no Jardim Ouro Verde, em cortiço e em casa de um cômodo e banheiro. Em 2001, chegamos a morar em Garça. Quando eu estava na 8.ª série, minha mãe, cansada de sofrer violência doméstica, se separou e fomos viver no Jaraguá. Por conta dessa inconstância, mantive apenas alguns amigos no Ouro Verde.

JC - E, mesmo diante dessa instabilidade, conseguiu ingressar no CTI?
Erick - Sim. Mas, no 3.º ano, decidi ser padre e ingressei no seminário, porque já sentia uma forte vocação em trabalhar para o próximo. Morei no seminário por um ano e meio, e, aos trancos e barrancos, me formei em técnico em mecânica pelo CTI. Eu gostava de filosofia, política, era um aluno meio rebelde. Mas, lá, entendi a importância da dedicação aos estudos e que eu poderia conquistar meu espaço.

JC - Quando descobriu que queria ser médico?
Erick - Desde pequeno. Por ser uma criança mais doente, vivia internado em hospital, o que acabava sendo um refúgio dos problemas de casa. Eu assistia à série Plantão Médico e gostava de brincar de dissecar restos de frango. Também brincava de fazer cirurgia em ursinhos de pelúcia, injetando sangue de carrapatos dentro deles. Mas eu não tinha referencial. Minha família queria que eu terminasse o ensino médio e conseguisse um emprego em uma firma boa.

JC - Como foi a transição do seminário para a universidade?
Erick - Dois amigos do CTI e eu ficamos em 1.º lugar, no Estado, e em 2.º, no País, na Olimpíada Nacional de História do Brasil, promovida pela Unicamp. Conhecemos a universidade e um novo mundo se abriu, reacendendo meu desejo de ser médico. Em oração, recebi a resposta de Deus: eu seria médico. Saí do seminário, voltei para casa e fui trabalhar como carregador de paletes na Kraft Foods. Eu estava com 18 anos e descobrindo minha homossexualidade. Minha família não compreendia muito bem e decidi sair de casa para estudar. Passei em biologia na UFSCar, tive auxílios moradia e alimentação e dava aulas no cursinho pré-vestibular da universidade para me manter.

JC - Como chegou, finalmente, ao curso de medicina da Uninove?
Erick - Biologia não era o que eu queria e, após um ano de curso, prestei vestibular para medicina, mas não passei e fui cursar engenharia de materiais na UFSCar. Minhas expectativas se frustraram mais uma vez e, no fim de 2015, voltei para Bauru, tendo apoio da família para me preparar para prestar medicina. O Alef, meu melhor amigo, emprestou dinheiro para eu fazer um curso online e também fiz, em 2016, o curso Principia, da Unesp. Eu estudava de 12 a 14 horas por dia, com muita disciplina. Fiz as provas e tive bom desempenho na Unifesp e Unicamp, mas sem conseguir a aprovação. Em setembro de 2017, a Uninove abriu o curso de medicina e reservou dez vagas a bolsistas. Mais de 1 mil pessoas se inscreveram e fui um dos aprovados. O resultado saiu em 29 de setembro, dia do meu aniversário, e autoridades, acompanhadas da imprensa, vieram em casa me dar a notícia de surpresa. Toda vez que me lembro daquele dia, me emociono.

JC - Como foram os anos de curso e o que pretende fazer a partir de agora?
Erick - O maior desafio não foi tirar notas altas ou andar 50 minutos de ônibus todo dia para chegar à faculdade. Foi aprender a conviver em um ambiente totalmente diferente da minha realidade. Sendo gay, preto e pobre, não me sentia parte daquilo, via olhares de desconfiança. Em maio, prestei concurso na prefeitura, fui aprovado e assumo em breve. Vou praticar uma medicina humanizada, acolhedora. Quero dar plantões em uma unidade de urgência e emergência aos sábados e domingos e me dedicar aos estudos para ingressar na residência de neurologia clínica ou medicina intensiva. Sei que será difícil conciliar as duas coisas, mas, na minha vida, nada foi fácil.

JC - Espera que sua história inspire outros jovens como você a não desistirem dos sonhos?
Erick - Quando a gente acredita no sonho, passa a ter mais entusiasmo, força de vontade, coragem e disciplina para alcançá-los. Foi determinante para mim aceitar minha realidade para mudar a partir dela. Mas são necessárias políticas públicas de afirmação para estes jovens conseguirem desenvolver seus potenciais, dar suporte e mobilizar a sociedade para ajudá-los a não desistirem diante das dificuldades que encontrarão no caminho.

Pôster de Erick foi considerado o melhor em Congresso Médico-acadêmico da Uninove (crédito: Arquivo pessoal)
Pôster de Erick foi considerado o melhor em Congresso Médico-acadêmico da Uninove (crédito: Arquivo pessoal)
Erick com a avó Maria de Lourdes, a mãe, Ivonice, e a irmã, Érica (crédito: Arquivo pessoal)
Erick com a avó Maria de Lourdes, a mãe, Ivonice, e a irmã, Érica (crédito: Arquivo pessoal)
Erick em 2017, quando recebeu a notícia de que estudaria na Uninove (crédito: Aceituno Jr./JC Imagens)
Erick em 2017, quando recebeu a notícia de que estudaria na Uninove (crédito: Aceituno Jr./JC Imagens)

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