ESTREIA HOJE

Como Gianecchini se transformou em drag queen para 'Priscilla'

A partir desta sexta, São Paulo recebe a versão brasileira de 'Priscilla, a Rainha do Deserto', uma adaptação da Broadway para o clássico queer do cinema

Por Diogo Bachega | 07/06/2024 | Tempo de leitura: 5 min
da Folhapress

Divulgação/Pedro Dimitrow

Reynaldo Gianecchini reconhece que participar de 'Priscilla' foi desafiador, mas representa um avanço pessoal e profissional
Reynaldo Gianecchini reconhece que participar de 'Priscilla' foi desafiador, mas representa um avanço pessoal e profissional

A profusão de cores das maquiagens e perucas no camarim antecipam que estamos diante do universo das drag queens. A partir desta sexta, São Paulo recebe a versão brasileira de "Priscilla, a Rainha do Deserto", uma adaptação da Broadway para o clássico queer do cinema. No musical, Tick, personagem do ator Reynaldo Gianecchini, recebe um ultimato de sua mulher.

Ela administra um cassino na Austrália que precisa de um show novo e decide unir o útil ao agradável ?que o marido, que interpreta a drag queen Mitzi Mitosis, viaje para se apresentar lá e conheça o filho do casal, Benjamin.

Apesar de temer o encontro, sem saber o que o filho vai achar quando souber que o pai é uma drag queen, Tick aceita o convite e se junta a Adam, à drag jovenzinha Felicia e a Bernadette, uma veterana que deixa a aposentadoria para acompanhar o amigo.

Diego Martins, alçado à fama interpretando Kelvin na novela "Terra e Paixão", vive Adam. Bernadette é interpretada por Verónica Valenttino e Wallie Ruy, que se revezam no papel, numa das primeiras vezes em que a personagem trans é vivida também por atrizes trans.

Martins, que já é uma drag queen fora do espetáculo, faz a própria maquiagem, enquanto Gianecchini depende de um maquiador. Sua escalação, aliás, é uma polêmica que assombra o musical. Parte do público, sobretudo do universo drag, achou equivocado chamar para o papel um ator que dizem ter pouca afinidade com o universo LGBTQIA+ e sem experiência com musical.

Gianecchini reconhece que participar de "Priscilla" foi desafiador, mas representa um avanço pessoal e profissional e dá continuidade a um movimento que ele começou no ano passado com a peça "A Herança", em que interpretou um gay conservador que se apaixona por um jovem ativista.

"'A Herança' foi a grande abertura para eu me sentir confortável em estar incluído na comunidade LGBT. Agora, quero me divertir com a liberdade que conquistei", ele diz.

As peças, no entanto, não trouxeram apenas liberdade para o ator. Desde "A Herança", Gianecchini é criticado por pessoas que enxergam em seu comportamento uma tentativa de, de uma só vez, se afastar das pautas da comunidade LGBTQIA+ e turbinar a sua fama a partir delas.

Não é como Gianecchini vê a questão. "Quando expus meu medo de estar assumindo de verdade essa comunidade, não é que estava rejeitando essa parte. Só estava expondo uma fragilidade minha, a de que eu não conseguia falar ainda sobre isso nem me sentir à vontade", acrescenta o ator, que é pansexual.

Gianecchini afirma que suas declarações foram tiradas de contexto e só por isso ele foi cancelado por parte da comunidade LGBTQIA+. "De certa forma, fui muito agredido a vida inteira, porque sempre me cobraram muito sobre sexualidade", ele diz. "Ninguém deveria cobrar ninguém de sair do armário. Se a comunidade quer acolhimento e respeito, ela também tem que oferecer isso."

O ator também compara o momento que vive agora, desde que deixou de ter um contrato de trabalho fixo com a TV Globo, com o que viveu quando entrou na emissora, em 2000, para atuar em "Laços de Família", de Manoel Carlos. Se aquela era a sua primeira novela, este é seu primeiro papel como uma drag queen.

"Demorei muito tempo para começar a me soltar [na preparação para o musical]. As primeiras semanas foram muito difíceis para mim, porque tinha que lidar com as questões emocionais de me sentir pertencente a este mundo. Cheguei muito intimidado."

Diego Martins também vive um novo momento. Ele vem fazendo musicais há sete anos, mas agora sobe ao palco após passar pela Globo. Em "Priscilla", o ator diz ver a oportunidade de continuar o trabalho que começou com Kelvin, personagem gay que, embora fosse um alívio cômico, movia toda a trama de "Terra e Paixão", algo ainda raro na televisão.

"Boa parte das coisas que a gente tentava abordar com certo cuidado com o Kelvin, porque estávamos na TV, no teatro a gente tem mais liberdade e menos dedos para falar", ele afirma, acrescentando que entende o drama de Gianecchini com a sexualidade.

O diretor Mariano Detry também defende a escalação de Gianecchini. A sugestão veio da produção, e ele, que é argentino e vive no Reino Unido, não conhecia a trajetória do ator, mas afirma que ela espelha a de seu personagem, também um homem enfrentando dramas ligados à aceitação.

"A história tem muitos paralelos com a vida de Gianecchini", afirma o diretor. "Tick é uma drag queen que já foi importante, mas sua carreira está indo para baixo, porque a nova geração, a de Adam, está crescendo, o que também pode ser um paralelo com o Diego, que está bombando."

A escalação de Gianecchini não é a única que chama a atenção na nova montagem de "Priscilla". Wallie Ruy e Véronica Valenttino, que interpretam Bernadette, são duas atrizes que ajudam a quebrar a chamada tradição de "transfake" nos palcos. A prática se refere a quando personagens trans são interpretadas por artistas cinsgêneros.

Valenttino foi a primeira atriz trans a ganhar o Shell, um dos principais prêmios do teatro brasileiro, por sua atuação no musical "Brenda Lee e o Palácio das Princesas". Ela tem uma carreira bem-sucedida nos palcos e na música.

Ruy, também uma atriz premiada, fez peças com o Teatro Oficina e atuou em séries como "Aruanas", do Globoplay. Ela ganhou ainda um Kikito, o prêmio máximo do Festival de Gramado, um dos mais importantes eventos de cinema do país, pelo curta"Marie".

Apesar do sucesso, as duas atrizes mantêm a postura crítica de quem sabe que, por mais que tenha conseguido alguma estabilidade, ainda vivem em um país que é transfóbico. "Eu disse, no Shell, que o prêmio não era só meu, mas de todas as travestis que hoje podem sonhar em viver de arte, e não mais de prostituição, para onde nossos corpos são empurrados", diz Valenttino.

"Eu acredito nessa potência e nesse teatro como arma de revolução", acrescenta. "A gente não pode garantir que o público que vai nos ver vai sair transformado, mas vamos aproveitar os poros dilatados e causar essa catarse que faz pensar."

"Artistas transvestigeneres não começaram comigo e com Verónica", acrescenta Ruy, que lista Brenda Lee, Cláudia Wonder e outras estrelas importantes da história brasileira. "Mas tudo o que se constrói nessa arte é marginalizado. Trabalhar com uma irmã neste espetáculo só reforça que sempre trabalhamos com perfeição, mas que nunca nos viam como talentos possíveis."

Ruy também discute bastante a escalação de Gianecchini. "Eu acho que é polêmico e deve ser polêmico", ela diz. "Mas qual é o papel que estamos desempenhando para que essas polêmicas sobre o que é aceitável deixem de existir?"

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