A discussão sobre transformar o abandono afetivo em causa legítima para excluir herdeiros voltou ao centro do debate jurídico brasileiro. O tema, que envolve diretamente o envelhecimento da população e o dever de cuidado entre familiares, ganhou fôlego no Congresso e encontra respaldo em julgamentos que reconhecem a omissão como violação grave.
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O Projeto de Lei 3.145/2015 — em tramitação há quase uma década — pretende atualizar o Código Civil para permitir a deserdação de filhos e netos que deixem pais ou avós em situação de vulnerabilidade emocional, material ou de saúde. Hoje, a legislação só prevê exclusão em hipóteses como tentativa de homicídio, ofensa grave, violência ou crimes relacionados ao testamento.
A iniciativa recebeu pareceres favoráveis em comissões ligadas à proteção da pessoa idosa, um reflexo direto do crescimento acelerado da população acima dos 60 anos e do aumento de denúncias de negligência familiar.
Antes mesmo de uma mudança na lei, tribunais brasileiros já analisam a conduta de herdeiros sob a ótica da dignidade humana e da solidariedade familiar. Pesquisas acadêmicas e pareceres especializados apontam que a negligência sistemática pode ser equiparada a atos de injúria moral ou violência psicológica.
Em alguns estados, decisões reconheceram que o abandono afetivo de pais idosos justifica indenização por danos morais. Embora não trate diretamente de sucessão, esse entendimento abriu espaço para que magistrados passem a interpretar a omissão como comportamento incompatível com a proteção constitucional da família.
Nos últimos anos, decisões isoladas vêm ampliando a discussão. Em situações nas quais filhos ignoraram por anos o estado de saúde dos pais ou se omitiram diante de necessidades essenciais, tribunais apontaram a existência de “violação grave”, reforçando a tese de que a afetividade — ou sua ausência — possui repercussões jurídicas.
Parte da doutrina defende inclusive a ideia de “afastividade” como valor jurídico, argumentando que o afeto não deve ser visto apenas como elemento emocional, mas como expressão concreta do dever de cuidado.
Caso o PL avance ou se a jurisprudência se consolide, o Direito Sucessório deve passar por uma transformação significativa. Entre as consequências possíveis estão:
A medida também pode reduzir episódios frequentes em que filhos reaparecem apenas após a morte dos pais para reivindicar patrimônio.
A proposta, porém, não avança sem críticas. Especialistas argumentam que ampliar as hipóteses de indignidade pode abrir brechas para disputas emocionais serem travadas no Judiciário e tornar subjetiva a avaliação sobre o que constitui abandono. Há também temor de que a judicialização de conflitos familiares cresça ainda mais.
Já os defensores do projeto afirmam que a legislação atual não acompanha as transformações sociais e ignora uma realidade em que muitos idosos vivem sozinhos, sem suporte de familiares.
O abandono afetivo como motivo para perda de herança deixou de ser apenas tema acadêmico. Hoje, é pauta parlamentar, aparece em decisões judiciais e mobiliza juristas. Mesmo sem lei aprovada, o avanço das discussões aponta para uma possível reconfiguração das regras de sucessão no país.
Se a mudança se concretizar, o abandono afetivo deixará de ser apenas uma dor silenciosa dentro das famílias brasileiras e poderá ter efeitos diretos no patrimônio — e no futuro — de quem negligencia seus próprios pais.