
Uma criança cuidando de outras três. Dona Malvina, vendo o gênio difícil da filha Adeli Granziola — mandona, respondona e atrevida —, colocou-a, aos 8 anos, a trabalhar na casa de Dona Antônia Belini, como pajem dos seus três filhos Nina, Ieié e Neno, todos com paralisia cerebral. Dava-lhes, nas bocas, o café e o almoço.
Em troca, ganhava roupas e calcinhas. A menina não gostava de estudar. A família mudava-se, constantemente, de casa. Somente em um ano, conhecera três escolas diferentes. No Jerônimo Galo, aos treze anos, aprendera a fumar e abandonara os estudos. Arrumara emprego numa casa de família, como doméstica e, depois, como caixa, no Supermercado Brasil. Dona Malvina dizia que Adeli não aprendera nada na escola, a não ser, a fumar. Também fora balconista na rodoviária de Piracicaba antes de assumir o posto de secretária na Autopira, onde conhecera o esposo Claudimir, com quem se casara, em 1978, aos 23 anos.
Ele aprendera a fumar com Adeli, logo depois do casamento. Concluíra o Ensino Fundamental II num curso supletivo depois que os três filhos nasceram. Enquanto Thaíse, Thaiane e Marcelo eram pequenos, a esposa ficou em casa, mas, logo que eles cresceram, ensinou-lhes os afazeres domésticos: limpar e organizar a casa, lavar e passar as roupas e cozinhar. Thaiane, com dezesseis anos, fazia o almoço para Marcelo, o irmão mais novo. Adeli voltara a trabalhar. Vendia cartões telefônicos no Beco da Rodoviária antes de assumir a função de inspetora de alunos na Escola Estadual Professor Abigail de Azevedo Grilo. Exercia-a com autoridade e ajudava no que precisasse, até com a limpeza das salas de aula. Os alunos queriam-na bem pois ela lhes ouvia como confidente, conquistando-lhes a confiança. Certa vez, um dos alunos detonou uma bomba no banheiro, causando o maior alvoroço. Adeli pediu licença às professoras e entrou, de sala em sala, advertindo-os do perigo. Nunca mais houve caso semelhante. O dia mais marcante fora quando um aluno chegou armado à escola e, agitado, anunciou que cometeria suicídio. Adeli conseguira aproximar-se e, conversando, desarmou-o. Havia dois projéteis no revólver.
A filha Thaíse levou Adeli à consulta comigo. Na primeira vez, em 2015, conseguira abandonar os cigarros por seis meses. Depois de engordar doze quilos, chegando aos setenta, (Adeli é miúda — tem 1,55m), recaiu. Em 2022, conseguira ficar, apenas, dois meses longe dos cigarros. A terceira vez, definitiva, acontecera em julho de 2023, quando, após fazer de tudo para curar uma gripe arrastada, com xaropes caseiros e água de cebola com açúcar, buscou ajuda com a Dra. Luzia Pedroso. Era um câncer de pulmão avançado. O tumor, uma mancha com oito centímetros, no pulmão esquerdo, encontrava-se muito próximo ao coração e não podia ser retirado por cirurgia.
No Brasil, o câncer de pulmão é o quarto em incidência, atrás, apenas, dos tumores de mama, de próstata, de cólon e de reto. A fumaça do tabaco contém várias classes de carcinógenos que exercem efeitos genotóxicos – proliferação celular, angiogênese e indução à metástase. Parar de fumar torna-se fundamental para pacientes com câncer de pulmão, pois melhora a eficácia do tratamento, diminui o risco de complicações e aprimora a qualidade de vida: melhora a função pulmonar; reduz a tosse, a falta de ar e a fadiga; aumenta o nível de atividade e melhora o estado de desempenho, o apetite, o sono e o humor.
A taxa de sobrevida de uma pessoa com câncer de pulmão varia de acordo com o estágio do tumor, o diagnóstico precoce, o tipo de câncer, a saúde do paciente e a resposta ao tratamento. De acordo com o INCA — Instituto Nacional do Câncer —, a taxa de sobrevida relativa, em cinco anos, para o câncer de pulmão é de 18%. Isso significa dizer que, de cem pessoas diagnosticadas com câncer de pulmão, apenas dezoito estarão vivas após cinco anos.
Ela chegou a mim muito emagrecida, enfraquecida e desolada, dizendo que precisava, urgente, parar de fumar. Acolhi-a com afeto e conduzi-a ao tratamento do tabagismo. Dessa vez, conseguira manter-se longe dos cigarros e o mal-estar provocado pela abstinência confundiu-se com aqueles decorrentes da quimioterapia — terríveis, segundo ela. Chorava, escondida, no quarto e pedia licença às visitas para vomitar no banheiro. Os filhos e o marido revezavam-se para acompanhá-la às sessões de quimioterapia. Naquele dia em que a vi, achei que ela não aguentaria o tratamento. Porém a família uniu-se para deixá-la confortável e amparada e sentiram crescer o amor. Surpreendi-me quando a revi, quase um ano depois, fortalecida e cheia de histórias: histórias de biópsias, de tomografias, de oncologistas, de rádio e de quimioterapias e de vontade de voltar a trabalhar e de tratar os dentes — queria voltar a fazer faxina para ter o próprio dinheiro. Mas, sobretudo, surpreendeu-me a imensa vontade de viver e a gratidão pela vida, que agarrava com todas as forças.
Juliana Previtalli é médica cardiologista e idealizadora do projeto antitabagismo.