TRÁFICO DE ÓRGÃOS

Mortes das quatro vítimas do Caso Kalume completam 38 anos

Por Julio Codazzi | Taubaté
| Tempo de leitura: 5 min
Arquivo
Hosic funcionava onde hoje fica o Hospital Regional de Taubaté
Hosic funcionava onde hoje fica o Hospital Regional de Taubaté

As mortes das quatro vítimas do 'Caso Kalume', como ficou conhecido nacionalmente o esquema de tráfico de órgãos humanos descoberto na década de 1980 em Taubaté, completaram 38 anos no fim de 2024.

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A primeira vítima foi José Miguel da Silva, de 43 anos, que deu entrada no antigo Hosic (Hospital Santa Isabel de Clínicas) após ser atropelado em Campos de Jordão. A morte foi registrada em 16 de setembro de 1986, por traumatismo raquimedular - uma lesão na medula espinhal.

A segunda vítima foi o estudante Alex de Lima, de 15 anos, que morava em Pindamonhangaba. A morte foi registrada em 1º de novembro, por traumatismo cranioencefálico.

A terceira vítima foi o aposentado Irani Gobo, que tinha 46 anos e passou mal na casa dele, em Taubaté. A morte foi registrada em 22 de novembro, por aneurisma cerebral.

A quarta vítima foi o faxineiro José Faria Carneiro, de 40 anos, que morava em Campos do Jordão. Ele foi levado ao Hosic após ser agredido durante um assalto. A morte foi registrada em 22 de dezembro de 1986, por traumatismo cranioencefálico.

Para o Ministério Público, as causas dessas mortes foram inventadas por médicos que atuavam no hospital. O objetivo seria esconder que os rins foram retirados enquanto os pacientes ainda estavam vivos.

Esquema.

Segundo a denúncia do MP, dois dos médicos envolvidos no esquema eram os neurocirurgiões Antônio Aurélio de Carvalho Monteiro e Mariano Fiore Junior, que foram os responsáveis pelos diagnósticos de morte encefálica e, posteriormente, pelos atestados de óbito com causas das mortes inventadas.

Após o diagnóstico de morte encefálica, os rins eram retirados pelo médico urologista Rui Noronha Sacramento e pelo médico nefrologista Pedro Henrique Masjuan Torrecillas. Para a Promotoria, os pacientes ainda estavam vivos durante as nefrectomias e acabavam morrendo em decorrência da extração dos órgãos.

Após a retirada, os órgãos eram levados para pacientes em São Paulo. Era a família dos beneficiados, inclusive, que pagava pela extração feita em Taubaté. Mas a investigação do MP nunca conseguiu identificar os receptores dos rins.

Caso Kalume.

A denúncia foi feita ao Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo) em 1987 pelo médico Roosevelt Kalume, então diretor da Faculdade de Medicina de Taubaté. Kalume relatou que colegas de profissão haviam implantado um programa ilegal de retirada de rins de pacientes ainda vivos para doação e transplantes.

O caso, que foi batizado com o nome do denunciante, ficou conhecido nacionalmente e passou a ser investigado pela Polícia Civil. O inquérito, concluído apenas em 1996, apontou que os quatro médicos eram responsáveis pelas mortes dos quatro pacientes, ocorridas em 1986, no antigo Hosic, que funcionava onde fica atualmente o Hospital Regional.

Durante a investigação, peritos do IML (Instituto Médico Legal) apontaram que os documentos disponíveis nos prontuários não eram suficientes para atestar os quadros de morte encefálica - ou seja, que nem todos os exames necessários haviam sido realizados. Em um dos casos, de José Faria Carneiro, os peritos afirmaram que os laudos apontavam que o sistema de irrigação intracraniana estava ativo, o que é incompatível com o diagnóstico de morte encefálica.

Julgamentos.

Um dos acusados, o médico Antônio Aurélio de Carvalho Monteiro, morreu em maio de 2011, antes do caso ser julgado. Em outubro de 2011, os outros três réus – os médicos Pedro Henrique Masjuan Torrecillas, Rui Noronha Sacramento e Mariano Fiore Junior – foram a júri popular e acabaram condenados a 17 anos e seis meses de prisão.

No júri popular de 2011, uma enfermeira foi ouvida como testemunha e disse que presenciou quando um dos médicos enfiou um bisturi no peito de um dos pacientes que ainda se debatia.

Os médicos, que afirmam que os pacientes já estavam mortos quantos os rins foram retirados e que os prontuários analisados pela investigação estariam incompletos, recorreram ao Tribunal de Justiça para pedir a anulação do júri popular, sob a alegação de que houve cerceamento de defesa e que a decisão dos jurados teria contrariado as provas do processo, mas a condenação foi mantida pela 6ª Câmara de Direito Criminal em junho de 2021 – os desembargadores determinaram apenas a redução da pena, que passou a ser de 15 anos de prisão.

Os médicos ainda têm recursos pendentes de julgamento, nos quais pedem que o STJ (Superior Tribunal de Justiça) e o STF (Supremo Tribunal Federal) anulem o júri de 2011. Além de não terem sido presos ao longo do processo, os três médicos continuaram com os registros ativos no Cremesp – eles podiam trabalhar normalmente porque foram absolvidos das acusações de tráfico de órgãos e de eutanásia nos procedimentos administrativos e éticos do Cremesp, em 1988, e do CFM (Conselho Federal de Medicina), em 1993.

Prisão.

Em setembro de 2024, após o STF decidir, em outro processo, que condenados por júri popular podem ser presos imediatamente, a família de Alex de Lima pediu a prisão dos três médicos que ainda continuavam vivos.

Após concordância do MP, o juiz Flavio de Oliveira Cesar, da Vara do Júri de Taubaté, expediu os mandados de prisão no dia 14 de outubro. Três dias depois, um dos médicos, Pedro Henrique Masjuan Torrecillas, que tinha 70 anos, morreu em uma chácara da família, em Indaiatuba. Com isso, o processo foi extinto com relação a ele.

Passados mais de dois meses, os outros dois médicos - Rui Noronha Sacramento e Mariano Fiore Junior - continuam foragidos. As defesas de ambos pedem que ou os mandados de prisão sejam anulados ou que os médicos possam cumprir a pena em prisão domiciliar, mas até agora essas solicitações foram negadas em todas as instâncias.

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