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Gangstalking: perseguição mental?


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Divulgação

"Estou em prantos. Sinto tanta dor, inclusive em minhas partes íntimas, como se alguém as estivesse queimando", escreveu a soteropolitana R.S.B., ainda em 2012. À época, a mulher, que dizia ser alvo da ação de pessoas que a perseguiam e tentavam prejudicá-la, encontrou na internet um espaço onde compartilhar sua dor.

"Sou mais uma vítima das chamadas armas psicotrônicas, cuja ação ninguém é capaz de enxergar. E que suspeito que estão sendo usadas contra mim por traficantes do bairro onde moro, que agem impunemente. Não consigo escrever mais porque, além de gravarem tudo que faço e penso, eles me causam um sofrimento que só quem passa conhece. Se não morrer, em breve volto a escrever, mas venho outra vez pedir ajuda", acrescentou R.S.B..

Não demorou para que outros internautas se identificassem com a "aflição", o "desgosto" e a "raiva" que a soteropolitana manifestava em seus desabafos. Até porque, relatos semelhantes já não eram incomuns em fóruns e comunidades online, compartilhados por pessoas de diferentes nacionalidades e que manifestavam uma crença perturbadora: a de serem vítimas do chamado gangstalking.

O gangstalking é um fenômeno complexo que, a exemplo de várias expressões de transtorno delirante, expõe o quão frágil pode ser a capacidade do ser humano de diferenciar a fantasia do real (no sentido de juízos socialmente compartilhados).

Resumidamente, trata-se de uma crença infundada em que um indivíduo ou grupo é alvo da perseguição sistemática de pessoas ou entidades dispostas a desacreditar, prejudicar e levar suas "vítimas" à morte.

Diferencia-se do crime de perseguição (ou stalking), tipificado no Código Penal brasileiro desde 2021, porque, enquanto este possui elementos objetivos e provas concretas para denúncia, a crença na perseguição por grupos está frequentemente associada a delírios e alucinações, muitas vezes envolvendo teorias da conspiração.

Muitas pessoas que afirmam serem seguidas, vigiadas e assediadas física e psicologicamente se identificam como indivíduos-alvo (ou target individuals - TIs). Compartilham a tese de que seus "perseguidores" (ou stalkers) possuem não só "armas psicotrônicas", capazes de afetar o sistema nervoso, como também modernos dispositivos eletrônicos capazes de "ler" pensamentos e controlar o comportamento de suas "vítimas".

Há, também, os que se veem como pessoas ungidas, escolhidas para desempenhar uma missão especial. E que, consequentemente, creem que seus supostos perseguidores não passam de marionetes a serviço de forças malignas que pretendem corrompê-los e desviá-los do caminho do bem.

Internet

O termo gangstalking não consta de nenhum manual de diagnóstico psiquiátrico, mas relatos como o de R.S.B. dão conta de um sofrimento real.

Tanto que os poucos especialistas que já se debruçaram sobre o tema destacam a importância de que os casos sejam tratados com sensibilidade e empatia.

Até porque, conforme explica o professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Paulo Dalgalarrondo em um livro que é referência acadêmica no estudo dos transtornos mentais, a crença em ser perseguido é o tipo de delírio mais frequente, podendo surgir de experiências sensoriais intensas, como alucinações.

"O indivíduo acredita com toda a convicção que é vítima de um complô e que está sendo perseguido por pessoas conhecidas ou desconhecidas […] não lhe restando alternativa a não ser integrar [tal crença] em sua vida por meio do delírio", disse o professor Paulo Dalgalarrondo.

Associações

O termo gangstalking e a crença no emprego das chamadas armas psicotrônicas passaram a circular com mais força na internet.

Nos Estados Unidos - onde não demoraram a surgir empresas vendendo de dispositivos contra o assédio eletrônico a camisetas alusivas ao tema - e no Brasil, foram criadas entidades nacionais com o objetivo manifesto de defender os interesses dos indivíduos-alvo.

Ainda que, anonimamente, vários deles defendam, em fóruns e grupos, que, por segurança, as "vítimas" do gangstalking não devam se expor nem confiar em ninguém - incluindo parentes e amigos que tentem convencê-los de que precisam de ajuda.

No Brasil, há ao menos duas entidades nacionais com CNPJ ativo junto à Receita Federal. Uma foi fundada em setembro de 2022, para proteger e amparar as vítimas de tortura psicoeletrônica, e tem sede em Nova Friburgo (RJ). A outra, dedicada à mesma causa, funciona no Recife.

"É um consenso de que há coisas sobre as quais não devemos falar, informações que não podemos passar adiante", acrescentou R.R.F., esquivando-se de algumas perguntas na entrevista à reportagem, para, em seguida, se estender ao responder sobre a possibilidade de o gangstalking ser apenas um delírio persecutório e um indício de que os que nele acreditam precisam do apoio de um profissional em saúde mental.

"Não aceito estes diagnósticos e muitas outras pessoas também os combatem. Na associação, procuramos filtrar os participantes, verificando se apresentam algum tipo de delírio ou sintoma esquizofrênico. É uma filtragem eficiente. E temos documentos que descrevem ocorrências muito lógicas", disse R.R.F., reafirmando a crença na existência de dispositivos capazes de ler pensamentos, controlar comportamentos e causar mal a grandes distâncias.

Como ajudar?

A psicoterapeuta e assistente social norte-americana Liz Johnston é uma das poucas acadêmicas a estudar o gangstalking no mundo. Professora da Universidade Politécnica da Califórnia, ela debruçou-se sobre o assunto ao atender dois pacientes que se intitulavam indivíduos-alvo e que diziam ser perseguidos por pessoas que se uniram para prejudicá-los. Organizadora de um livro que reunirá artigos de pesquisadores convidados a colaborar com a publicação, ela é cautelosa ao tratar de diagnósticos.

"Qual o benefício de rotularmos alguém com um problema de saúde mental?", questiona Liz, para quem o mais importante é acolher as pessoas que, de fato, estão sofrendo e, a seu modo, pedindo ajuda. Interessada nos dilemas éticos envolvidos no tema, a psicoterapeuta acredita que investigar o gangstalking pode ajudar a ciência a "iluminar o quebra-cabeça das causas da paranoia", mas diz que o tema interessa também a estudiosos das mídias sociais, direito, ciências sociais, entre outros campos. Leia aqui os principais trechos da entrevista de Liz Johnston.

É importante procurar ajuda de um profissional capacitado para lidar com situações difíceis a fim de manter a saúde mental. O Centro de Valorização da Vida (CVV) oferece um serviço de escuta acolhedora e apoio emocional, disponível no telefone 188. Há também o Mapa da Saúde Mental, ferramenta que permite a busca de serviços públicos e gratuitos por localidade.

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