ARTIGO

Lembranças de um velho aldeão (6) – Padre Jorge, um adeus mais sereno

Por Cecílio Elias Netto |
| Tempo de leitura: 3 min

Houve quem estranhasse – com razão – o silêncio do escrevinhador quando da partida do nosso Monsenhor Jorge Simão Miguel, o inesquecível Padre Jorge. O motivo foi, talvez, um dos mais corriqueiros: não consegui escrever. E tentei por várias vezes no mesmo dia. Nem sequer uma só linha foi dedilhada.

Naquele dia, creio ter entendido com mais clareza o pensamento de Ortega y Gasset: “eu sou eu e a minha circunstância”. E a minha era, então, a de alguém ainda em recuperação de enfermidade grave. Conheci e reconheci a minha própria fragilidade humana. E – relembrando tudo o que a vida já me proporcionara – rendia graças, um tempo pessoal de gratidão ainda maior. Então, a informação: “Morreu o Padre Jorge”.

Confirmava-se, pois, uma das poucas verdades a respeito do destino: a perda. Não se tratava de perda apenas pessoal ou de alguns. Era Piracicaba que perdia o Padre Jorge. Pois, em sua longa vida sacerdotal, tínhamos sido milhares e milhares de pessoas beneficiadas por sua atenção, generosidade, consciência fraterna. E, com certeza, cada um guarda lembranças saudosas de uma experiência humana gratificante.

Guardo-as, também. E muito especiais, pois vividas ao longo de 25 anos em atividades comuns na Igreja Católica. Tudo, porém, fora diferente em minha juventude. Ainda na adolescência, fui influenciado pela cultura marcante do extraordinário, polêmico e controvertido João Chiarini. Ele se dizia comunista.  Consequência: apaixonei-me por aquele comunismo idealístico da elite intelectual da época. E cultuei – esse é o verbo, cultuar – as figuras de Luiz Carlos Prestes, de Che Guevara. E quando este escrevinhador “caiu do cavalo” – à sua primeira iluminação – lá estava o Padre Jorge, com D. Aníger, para acolhê-lo e orientá-lo.

O Padre Jorge foi tido como um religioso conservador, talvez por nunca ter-se desfeito da batina, das vestes religiosas. Mas quanta abertura a ideias e crenças divergentes! E quanto respeito! Um homem que, sem abrir mão de suas convicções e lealdade católicas, conviveu harmoniosa e respeitosamente com as divergências. “Cada um sabe como lhe dói o calo” – dizia-nos diante dos conflitos entre doutrina e realidade.

Aliás, por tal compreensão e fraternidade, ele e D. Aníger eram chamados, em alguns meios católicos, de “cordeiros de Deus”. Pois eles faziam o que era próprio do “Cordeiro de Deus”: instrumentos para “tirar os pecados do mundo”. Foram, sim, legítimos instrumentos da compreensão, do perdão das fragilidades humanas.

Em 1968, o universo católico – com repercussão em todo o mundo – estremeceu com a verdadeira bomba lançada pelo então Papa Paulo VI: a encíclica “Humanae Vitae”. Foi uma revolução. O documento “ubi et orbe” discorreu sobre a regulação dos nascimentos e, portanto, o relacionamento afetivo e sexual dos casais. Havia resistências no clero mundial, raízes tradicionalistas muito fortes. Dom Aníger não hesitou em aceitá-las e o nosso Padre Jorge foi um convicto e generosos orientador das famílias diante de um mundo mais compreensivo que se abrira.

Foi, além disso, um construtor de obras, entre as quais a monumental Matriz de Vila Rezende. Nesta tão simples homenagem póstuma que o escriba lhe presta, há uma certeza: o cumprimento dele para com a catolicidade. Pois se o sentido do católico, do catolicismo é a universalidade (Katholicós, universal, em grego) o Padre Jorge exerceu-a em plenitude: sua missão foi universal, dedicada a todos, independentemente de suas convicções religiosas. Em qualquer lugar onde estivesse.

Um homem memorável.

Comentários

Comentários