Resgatar o pudor e a compostura

Por Cecílio Elias Netto |
| Tempo de leitura: 3 min

Sérgio Buarque de Holanda é, ainda, um dos pilares da cultura brasileira. (E, além disso, deu, ao mundo, o filho genial, Chico Buarque.) Um dos seus livros, “Raízes”, continua indispensável para se conhecer o Brasil. Nessa obra, Sérgio estabeleceu a noção de ser, o brasileiro, um homem cordial. Ao longo do tempo, essa afirmação foi e tem sido discutida, consideradas as profundas transformações sociais que a tudo parecem atropelar.
De minha parte, no entanto, ainda acredito nessa qualidade ímpar do povo brasileiro: a cordialidade. Ela tem sido, sem dúvida alguma, pisoteada, desafiada a desaparecer num universo de materialismo individualista onde até mesmo a pessoa humana parece inexistir. No Brasil, acredito eu, um dos grandes equívocos pode estar na óptica cultural paulista que enxerga o Brasil a partir de São Paulo. Há, porém, diversidades extraordinárias e São Paulo – com nosso desenvolvimento, com nossa multiplicidade – deveria ser visto como a grande exceção nacional. Estamos, por exemplo, mais assemelhados aos Estados Unidos do que ao Piauí.
Aquilo que Sérgio Buarque viu no Brasil é verdadeiro, desde que se entenda a raiz latina da palavra cordialidade: trata-se de “cordialis”, relativo ao coração. O brasileiro, em sua natureza, age conforme sentimentos, emoções, paixões, muitas vezes confrontando a razão. Ora, a razão é algo que se forma, que se constrói. O coração – como que misteriosamente – conhece uma outra verdade, acho que mais autêntica. Basta-nos perguntar a nós mesmos o que mais dói e machuca: errar pela razão, errar negando o coração?
Não há como negar a notável contribuição de Marx como filósofo. “A cultura dominante é a cultura da classe dominante” – refletiu. E, por mais se tente banalizar o pensamento, isso é real. Tão real que toda a história nos narra a saga de culturas dominantes aprisionando culturas dominadas. Seja lá, isso, feito à força, econômica ou sutilmente por influências ideológicas. Para o mundo ocidental, é determinante o que Hollywood fez com a magia de seus filmes, alterando hábitos, costumes, conceitos morais. Fumar, por exemplo, foi um vício em tecnicolor.
Uma economia de mercado sem regras tem o poder de qualificar pessoas também como mercadoria. Não me esqueço – e já contei de meu susto – quando, num encontro de amigos, uma jovem perguntou a outra: “Você já se vendeu?” E a resposta desolada: “Não, ainda não consegui.” Tratava-se de emprego. E parece ser, na realidade, o que tem acontecido. Vendem-se imagens, ideias; vendem-se ilusões, fantasias; vendem-se enganos. “Vender-se” significa “entrar no mercado de trabalho”. Uma realidade? Depende do que se entenda por isso. Pois há uma realidade sócio-político-econômica e uma realidade pessoal, individual, familiar. Uma não invalida a outra.
No mercado sem regras, o que existe é o vale tudo. Sem regras, a vantagem é do bruto, do desonesto, do espertalhão. Sem regras, despontam o individualismo, a força, uma racionalidade bruta. E, nesse panorama de “lei das selvas”, o homem cordial desaparece. E, com ele, o pudor público, o recato, a compostura. Anulando-se o homem cordial e a cordialidade, o Brasil – “gigante por sua própria natureza” – está ficando feio. E como o próprio presidente diz de si mesmo – “sou um tosco” – o Brasil tem sido assaltado por modos e hábitos toscos, incivilizados, feios.
Os Bolsonaro inauguraram, no Brasil, a cultura da grosseria, do desrespeito, do conflito, do ódio. Apenas o homem cordial poderá resgatar o pudor e a compostura.

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