Madalena, presente

Por Rubinho Vitti | 20/04/2021 | Tempo de leitura: 3 min

Eu tinha por volta de nove, dez anos. Uma tarde qualquer. Estávamos meu pai e minha mãe, eu e minha irmã de carro na rua Governador Pedro de Toledo que, claro, estava engarrafada. O dia quente típico de Piracicaba nos fazia deixar todos os vidros do carro abertos. De repente, como um raio atravessando a rua, vimos aquela mulher enorme, batendo suas tamancas no asfalto quente e colorindo a frente do carro com seu turbante esvoaçante e seu sorriso escancarado.

Ao ver meu pai, gritou como se visse um príncipe: "Motoristaaaaaaa", invadindo a janela do carro e lascando um beijo molhado em sua bochecha enquanto repentinamente saía rebolando e mexendo com todos na rua. Alguém a chamou de um outro lado: "Madalena!".

Era a primeira vez que escutava aquele nome, meio exótico, meio bíblico. Sentado no banco traseiro do carro, vi todo aquele espetáculo boquiaberto e uma certa excitação e curiosidade invadia minha alma reprimida pela primeira vez. Que liberdade era aquela?

Desde então, Madalena passou a ser parte da minha vida, assim como já era parte da minha família, dos meus vizinhos, parentes e amigos. Todo mundo conhecia Madalena!

O relato acima, com certeza, é muito parecido com o de vários piracicabanos que têm se emocionado desde a semana passada, quando Mada, como era conhecida, foi brutalmente assassinada, chocando uma cidade inteira.

Também são inúmeros os relatos dos jornalistas que tiveram Madalena como personagem de suas matérias e têm compartilhando suas memórias profissionais preciosas.

Como todos eles, eu também tive a oportunidade e honra de entrevistar Mada várias vezes pelo Jornal de Piracicaba. Em uma delas, Mada apresentava o vestido que usaria no Carnaval 2013. A revelação era quase que uma exclusividade. Feito com plásticos, bordados e lantejoulas, a fantasia azul a deixava estonteante e sorridente, como só ela.

Lembro de ter ido ao barracão da Caxangá, escola pela qual desfilaria como destaque em um carro alegórico. Era lá que ela provava a sua roupa pela primeira vez. Sempre simpática e muito simples, ela dava sua opinião sobre o Carnaval piracicabano atual com maestria, crítica e nostalgia, afinal, era expert no assunto, já que participava da festa desde os 14 anos, a partir da década de 1970.

Confesso que não era fácil entrevistá-la. Muitas vezes, resumia com poucas palavras seus sentimentos e não se aprofundava em assuntos que não dominava. A questão LGBTQ, por exemplo, não era exatamente algo sobre o qual ela pudesse discursar com maestria. Mas sua própria vivência já era, por si só, uma bandeira enorme que carregava com um certo peso, apesar de sempre negar qualquer tipo de preconceito.

A figura ensolarada que iluminava o centro da cidade e a avenida Armando Salles durante o  Carnaval foi parar na Câmara de Vereadores, não por acaso. Seu carisma conquistou eleitores que a conheciam e sabiam de seu trabalho comunitário.

Por mais que tenha usado o púlpito apenas uma vez, quando se despedia de seu cargo, Mada fazia se ouvir por estar ali, presente, incomodando, tanto eleitores pudicos como raposas velhas da política.

Lembro-me das várias manchetes do JP sobre ameaças de morte que ela recebia, principalmente por ter assumido o cargo. Ela nem tentou a reeleição justamente pela homofobia e pelo racismo que sofreu em quatro anos de mandato.

Madalena foi faxineira, cozinheira, carnavalesca e vereadora. Madalena podia tudo, só não poderia entrar nas estatísticas de morte violenta como tantas mulheres trans e travestis, principalmente negras, morrem. Não consigo aceitar isso. Piracicaba não consegue aceitar isso.

Agora, não podemos deixar que ela entre em outra estatística comum para esse tipo de crime, a impunidade. O mínimo é que haja justiça para Mada.

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