Ao crescer, perdi-me de mim

Por David Chagas | 19/04/2021 | Tempo de leitura: 3 min

"Quanto mais cresço, menos sou eu. Quanto mais me encontro, mais me perco. Quanto mais me sinto mais vejo que sou flor e ave e estrela e Universo. Quanto mais me defino, menos limites tenho. Transbordo Tudo. No fundo sou o mesmo que Deus."

Valho-me de Fernando Pessoa no texto Anarquismo, para dar sentido a tudo o que, talvez, não consiga dizer sem seu apoio. Sempre fiz de sua obra minha bíblia e leio tanto quanto a soberana Palavra queme dita caminhos e me ensina.


Entreguei-me ao poeta jovem, muito jovem, muito sem entender e querendo, buscando, insistindo muitas vezes. Contrariava-me aquela necessidade inaudita de uma geração marcada pelo obscurantismo de um tempo sufocado por ditaduras, neste pedaço de chão latino-americano, em que citar Neruda e Borges, entre hispânicos, e Pessoa, falar deles, dizer dois ou três versos decorados, permitiam exibir-se com ostentação.


Nunca fiz isso. Pessoa, para mim, era algo divino, sobrenatural. Devotava-lhe respeito. Lia com cuidado devido, com cautela, tentando saber o que provocara tamanha genialidade, num só poeta, distintas personalidades poéticas. Gostava tanto que devo ter cutucado o destino. Irritado, acabou levando-me, de modo inesperado, à África meridional. Lá estando, era como se tivesse ido para estar com ele.


Fiz , hoje sei, o que outros tantos fizeram com igual sentido. Fui a Durban, onde passou parte da infância e juventude. Conheci seu colégio, a Durban High School. Li muitos de seus poemas em inglês. Celebrei seu nome entre tantos sul africanos que pouco ou nada pareciam saber dele. Eu, antes mesmo de conhecê-lo, quanta proximidade ao sentir!


Ao despertar esta manhã, por algum motivo que desconheço, estive observando a vida da maneira como fazia na infância, no lugar onde vivi. Vida rústica, de campo. Do que gostava? De ouvir o alongado silêncio da tarde, demorado a mais não poder. Se me lembro? Punha-me à janela da sala e esticava o olhar por sobre as trepadeiras que circundavam a frente da casa onde vivia, buscando o mais distante, longe mesmo, muito longe, por trás dos campos e das árvores. Escrevendo, revejo. Sinto atéo cheiro, porque sentir é tudo. Não via nada a não ser as campinas que diziam tanto, convidando-me a estar com elas, a sentir-me parte delas. Como ele.


Na noite – e a escuridão era imensa – gostava de estar fora para igual exercício. Com as estrelas o jeito de olhar era diferente. Nunca mais tive com elas igual intimidade. Nem quando viajei pelo Amazonas e apareciam em igual ou maior profusão pude sentir o de antes. Lá, os meteoros eram em número tão surpreendente que acabavam por desfazer a teia que traçávamos eu, daqui, alimentando o espírito, elas, de lá, provocando isso como se para isso existissem. Desfizeram muito do que sonhava então. Menino, aprendi que eram também estrelas, mas cadentes. Esperava por vê-las vez ou outra despencando no espaço e até sofria por elas. Depois da viagem e de leituras tantas, se foi de vez este encantamento.


Quem me provoca esta conversa nossa é, sem dúvida, a manhã de abril, azul, translúcida, calma, distinta do noticiário visto ainda agora na televisão revelando um país marcado pela violência, pela maldade, pelo descompasso em que se encontra. Nada igual àquele abril dos tempos em que, à janela de casa, debruçado, imaginava tanto, pouco sabendo. A imaginação corria solta e os sonhos pipocavam.


Como de tudo não se perde, continuo a entender quanto sou da natureza e como está em mim. Por isso me maltratam ao destratá-la tanto. E converso com ela. Combinamos muita coisa que não realizamos, mas sonhamos juntos. Até mesmo o que fomos – ai, meu Deus! A diferença aqui está: ela permanece. Eu sei que fui. A que distância!

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