Cem Anos!!

Por David Chagas | 30/03/2021 | Tempo de leitura: 3 min

Quantos não foram os que, no centenário ou em datas significativas foram celebrados? De modo especial, quando o registro coincidia com a alegria da primavera, o calor do verão, a delicadeza do outono ou o rigor do inverno como contraponto, relacionar a estação do ano ao evento era dar frescor romântico ao acontecimento.

Se velho relógio de minha casa, uma das mais belas lembranças da avó materna, acumulando horas desde 1886,teve uma palavra minha, como deixar perder-se no tempo centenários que me dizem tanto?

Nasci deles e, como eu, quatro irmãs, a quem devoto amor e respeito. Uma delas se antecipou na ausência, mas não falta, como não me faltam sua presença e sua luz. Peço desculpas, mas a par da saudade, combino com o poeta e concordo que Deus se tenha esquecido, no decreto original, derevogar disposições contrárias e preservar a vida dos que vieram compromissados a serem pais.
Meus pais entram no grupo de centenários. Ele,um bocadinho mais velho, já celebrara em Deus, os cem anos. Esperei, por igual idade dela, para festejar de uma só vez as duas pessoas mais importantes da vida.

Como amavam por demais a terra onde nasceram, a que chamam Cidade Azul, pedi a Deus, tão-somente, que, ao fechar março, não deixasse de revelar o azul do céu em toda sua intensidade.Tanto um quanto outro dia, em azul, vestidos, brincaram com o sol, enchendo de luz o que deles persiste.

Como gostavam, trouxe dos campos, flores,jorrando ouro na cor, para enfeitarseus retratos na casa que preserva, legado deles, o relógio antigo, responsável por tantas horas felizes; a cadeira de balanço; os enfeites no belo e centenário móvel da sala de visitas e as imagens em pintura e fotografia, revelando beleza física no traço e caráter no olhar, provocando-nos causos em que são sempre protagonistas. Tudo cuidadosamente arrumado nos quatro cantos da sala, testemunha a história que construíram.

Minha mãe, pouco antes de morrer, e se vão quase cinquenta anos, insistia no desejo de estar, para sempre junto de seus filhos.Éramosseu exercício diário de amor, renovado em cada amanhecer, alimentando o desejo de prosseguir para olhar, sentir, amar, como só mesmo as mães sentem e sabem.

Já não lia. A vista lhe fora roubada pela doença. Sofria com isso. Pedia, então, que lêssemos algumas páginas do jornal fundado por seu pai, a quem sempre amou desmedidamente, homem humano, justo, digno, tão diferente de tantos que, com ele, caminharam em igual tempo por mesmos caminhos.Também, um e outro poema de Fernando Pessoa e, naquela tarde de quarta-feira,a menos de quarenta e oito horas da partida, uma crônica de Rubem Braga, “Despedida”, como se, ao ler, me obrigasse a sentir, antecipadamente, a dor imensa da separação.

De todos os dois, não foi uma leve tristeza. Cada qual a seu modo, todas duas vezes,não se envergonhou de revelarsua dor nem de confessá-la. Quanto o sentimento da saudade cutuca, sufocando, a dor volta a manifestar-se no olhar, no tom da voz, no suspiro profundo.A crônica, leitura da tarde anterior à despedida de minha mãe,ensinou o sentido real do adeus.

Hoje, melhor pensar em seus nomes e, por eles, entender sermos benditos e quebem-vindos fomos por termos nascido deles. Pensar assim é sentir manhã nova, sol sob o azul e eles a bordejar campos em flor, com pássaros, sabiás e bem-te-vis, cantando no amanhecer dos dias, provando ser, ainda,tempo para sonhar.

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