Minha ação, como a dela, é da palavra

Por David Chagas | 15/03/2021 | Tempo de leitura: 3 min

Seria tão bom amanhecer sem deixar entrever preocupação alguma, cumprindo no ritmo das horas o que se tem a cumprir, como o sol, ao levantar-se, cor e luz no olhar, empurrando a noite e, com ela, os incômodos todos, sem pressa alguma, no mesmo caminhar do astro ao afastar a treva.

Mas não. A manhã chega, muitas vezes, carregada de atribulações. Nem sempre a noite basta para refazer o esgotamento da andada anterior obrigando a um despertar com restos significativos de preocupação e angústia herdados da véspera, da antevéspera, a saber desde quando.

Se abrir janelas para chamar a luz traz alegria, promessa de dia bom, de paz, fazer o quê com noticiários vociferando? Ouvir mentiras, falcatruas, enganação, corrupção deslavada. Pior: deparar com crianças e adultos esparramados pela rua, denunciando sociedade cuja organização está completamente fora de ordem e de propósito. Sem falar de Estado acéfalo, incapaz de solucionar problemas seus que prefere afastados, tal sua incapacidade.

Quando jovem, doía em mim ver crianças e velhos, mãos estendidas clamando por algo que lhes aliviasse fome e dor, que lhes estancasse choro e medo. Nada mudou no correr do dia. Persistem estas injustiças todas que, observada a metáfora, só fizeram anuviar dias mal começados.

Bem gostaria de escrever como dona Clarice, dizendo tudo, sem dizer tanto. Instigando. O isolamento social imposto maltrata com o que vem nas informações recebidas. Quase trezentos mil mortos pela pandemia. Quase dois mil numa só noite. Hospitais sem leitos suficientes para atendimento. Fila de idosos por todos os lados em busca da vacina ainda incerta para tanto mal, alimentando esperanças. Sem leitos de terapia intensiva marcando ainda mais os médicos, heróis do novo tempo, pelo cansaço e pela angústia, humanos que são.

Dona Clarice – lembro-me bem – num sábado à tarde, conversando comigo dizia que “os problemas da justiça social despertavam nela um sentimento tão básico, tão essencial que não conseguia escrever sobre eles. Era algo óbvio. Não havia o que dizer”.

Meu Deus? Como podem eles, todos os que na meca do poder se ajeitam para o dia de trabalho onde tocam seu dia como o dia se toca a si mesmo, sem maiores preocupações, sem pensar em nada disso que avassala, aflige, sem incomodar-se com crianças e velhos, em especial. A eles, o que lhes importa isso?

O meu dia começara bem, sem nenhum anúncio de braveza no tempo. De repente, nuvem fora de lugar, no sopro forte do vento, moveu-se e derramou água neste canto de chão. Chuva de manga, diria meu pai. Pesada e forte. Nunca soube ao certo a razão do nome para chuva intensa e repentina. Mas por que de manga? Despeço-me da vida sem ter entendido, com clareza necessária, o nome. Reconheço, no entanto, metáfora perfeita para como vejo o dia e sonho a vida. Pode até começar bonito e bem. Como terminará?

A chuva, como veio, foi. O céu abriu-se sem nenhuma perturbação aparente. O dia é assim. Avança no tempo como deve ser, tranquilo. Se algo provoca novidade no correr das horas, apresenta sem aviso e prossegue como se nada acontecera. Como eles. Tocam o dia nas bancadas que ocupam decidindo, provocando chuva pesada em dias claros, sem que uma só gota possa interferir no resultado final. A ordem é não incomodar o que lhes garante bem-estar e conforto.

Novamente dona Clarice me faz companhia. Jamais pude aprender a tratar destas intempéries, como ela. Falta-me ironia necessária para cutucar. Não descobri seu segredo.
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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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