Da aurora da minha vida

Por David Chagas | 15/02/2021 | Tempo de leitura: 3 min

Os janeiros da minha infância eram diferentes. Havia movimento na casa, algazarra de criança, fogo ardendo em fogão de lenha à espera de tachos para variados doces, o barulho insistente da máquina de coser. O pulsar davida. Minha mãe, professora, em férias, ocupada com faina doméstica à espera do cair da tarde quando, sentada conosco para as leitura de histórias infantis nos ia apresentando o mundo.

Quando botei pé na universidade e me encontrei com um grupo afinado de colegas e entre nós pousou, primeiro, o professor Tom Suárez Abreu, depois, Madame Hall, mais tarde, Neidson Soares provocando voos inimagináveis para asas inexperientes, pude notar que minha mãe, em verdade, em torno de livros, de histórias, suas e de muitos outros, incluindo seu pai, de obras de arte, de música e de brinquedos, deve ter sido, de algum modo, discípula de Barthes, o genial teórico da linguagem, tanto insistia em remexer, conosco, sistemas de comunicação vigentes.Pagamos preço alto por isso.

Destacar-se na escola, num país como o nosso, é quase imperdoável. Sobretudo se no corpo, a marca, Maria, Maria!

Minhas irmãs, sempre mais devotadas ao estudo, brilharam. E meus pais se encheram de satisfação e orgulho. Fui bem, não nego. Não como elas. Grandes prêmios, muitas louvações e, por anos seguidos, bastava aos professores ser irmão de Iára, que era irmã de Cybelle quem era, também, irmã de Célia, como se recitassem, num outro conjunto de versos, a Quadrilha de Drummond. O leitor, por certo, esboçando um sorriso irônico, deve ter imaginado que, por pouco, não me excluíam da história.

Na tarde de hoje, juntos na mesa de almoço,num delicioso jogo de memória,elas e eu íamos e vínhamos multiplicando eventos, rindo a mais não poder das peripécias feitas, das conversas nas escadarias da frente de casa, dos passeios pelos caminhos ao lado de nossos pais.

Este grupo familiar, sei bem, me provoca mais que saudade. Não insisto em tentar entender, porque deixaria de ter, como ensina o poeta, o prazer de lembrar. Lembrança é lembrança e isto basta. Sugerir qualquer outro termo, perde sentido. Importa sentir. Sentir provoca lembrança das coisas simples, movidas a silêncio, espanto, entusiasmo, numa linguagem comum, nada perturbadora e facilmente interpretável..

Quero sentircomo se estivesse a ver fotografias, num tempo em que até mesmo fotografar era privilégio de muito poucos obrigando a memória a ocupar-se do registro, como se previsse estar, ao pôr do sol, ocupando-se disso para fazer o prazer de outrora.

Volto à cena. Quem me cutuca a memória destes enredos todos é um motorista em rua transversal à minha, anunciando pamonhas de Piracicaba. Não deve ser, embora garanta serem as legítimas. Falta-lhe sotaque característico da inconfundível cultura local que nos faz, a todos, parceiros do rio bonito. A pamonha da região é famosa. Não arrisco. Terá a cremosidade na massa de milho triturada que a memória guarda das januárias tardes, feita por meus pais, quando se tinha a sensação de empurrar, sem pressa, o tempo?

Neste ano, o isolamento social faz constante provocação. Em respeito a estas reminiscências, detenho-me sem me aproximar da janela para não ver quem anuncia como se tentasse, a meu lado, recuperar meu passado. Concluo, então, que desgosto destas delícias se não são aquelas.

Hoje, exatamente hoje, como daqueles dias, só mesmo o céu, o meu céu de primavera. Lindo. Obrigo-me, por ele e pela vida, a sorrir embora reconheça que, aos poucos, se vai perdendo a doçura destas risonhas manhãs.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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