Tantos rios em mim

Por David Chagas | 08/02/2021 | Tempo de leitura: 3 min

Os rios, seus afluentes, suas águas se juntam em mim, de algum modo, fazendo de minha cabeça um globo terrestre, confuso e maltratado. Em qual rio penso? De qual falo? Quais águas ou todas são uma só?

Não estou a pensar tão-somente nos rios e seus mananciais, seus olhos d’água, suas nascentes, suas corredeiras, sua mata ciliar que os veste em verde de distintos tons, no trajeto das águas. Também não penso nos lugares, nas cidades por onde passam, nas que os recebem nem tão pouco nas geradas em sua ribeira. Menos ainda nos povoados ao longo de seu curso, brotando à sua beira como se, batizados por suas águas, lhes devessem por gerações sem fim, gratidão e recompensa.

Sempre pude estar nas cercanias de rio, sempre os amei e sempre sofri por eles. Sempre me vi mirando seu trajeto supondo no privilégio de ser rio, sem voltar-se jamais para trás, superando tropeços, ultrapassando, não sem dificuldade, empecilhos, vencendo pedras no caminho.

Nasci nas imediações da tríplice fronteira onde se forma o Piracicaba. Vivi grande parte de minha vida em Rio Claro. Ali, o Ribeirão, exigindo transparência e verdade, nem sempre cumprida pelos que ali estão.

Lindo que só, o Ribeirão dá nome à cidade, oferece suas águas ao Corumbataí que alimenta o Piracicaba. Em Lisboa, do alto do prédio onde morava, vi a lua aninhar-se sobre o Tejo e adormecer com ele. Em Paris, la Seine, me obrigava, por amor, a ser leal a ele e à língua. Em Roma, o Tibre. Na África, o Zambeze. Sem falar de navegação imprudente, em embarcação precária, quando, pelo rio Courantyne, fiz o contorno da serra do Acari até quase o Atlântico para vê-lo deixar-se drenar pelo oceano, não sem admirar ao longo do percurso as guianas pintarem-se com as cores de milhões de borboletas.

O que me obriga a gostar tanto dos rios, a respeitá-los, a segredar-lhes histórias? Quanta tristeza soube confessar-lhes? Quantas?! E com quantas alegrias enfeitei suas águas?

Na infância, quando brincava no Corumbataí, não sabia de bacias hidrográficas nem de disputas entre cidades por suas águas. Havia fartura e tudo era bom. Pouco ou nada conhecia do Rio Piracicaba, este que em Americana, na junção de outros tantos, tem sua origem e penetra fundo o interior até alcançar o Tietê.

Ao jogar-se faz de sua foz interrogação por desentender a razão de, ao misturarem-se as águas, prosseguir nesta busca desmedida do interior até alcançar o Paraná, carregando consigo a pergunta: por que fugir do Oceano?

O coração e a alma. Um penetra fundo e alcança, no limite da dor, força para suportar e impedir que a outra também se desfaça. Um e outro conhecem seus segredos. Quem, em nós, engole o rio de lágrimas que nossos olhos revelam, sem que o coração diga a razão delas?

Por vezes, passo horas tentando decifrar a aflição do rio ao bater nas pedras atravancando seu caminho. Dele, o que sei, é que carrega consigo, com coragem, muito dos que dele se acercam, exigindo que suporte tudo e tanto. Por que olho tanto? Tentando entender e atender espírito e alma.

O que gosto neste fluir de águas, ora em abundância, ora em fio, roçando pedras, marcando fronteiras, estabelecendo limites é a lição. Aprender. Suportar, Ir em frente, sem voltar-se, sem arrepender-se jamais. O rio não recua.

Não permitam jamais que represem o movimento nem que deste murmurar de águas se faça silêncio.

O rio, e só o rio, conhece da natureza, a dor sem gesto e toda o mal que o tempo vem fazendo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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