Brasileiro que nem eu

Por David Chagas | 25/01/2021 | Tempo de leitura: 3 min

“Eu nada tenho a ver com os mortos de Manaus! Tu nada tens a ver com os mortos de Manaus!”

Quantos serão quando escrevo, os mortos de Manaus? Em que cidadezinha da ribeira do grande rio ou de outro rio qualquer na imensidão da Amazônia, haverá corpos atirados para que não contaminem outros tantos com mal que assola a Amazônia, região, desde sempre, tão distante do nosso olhar e dos olhos deles?

Em 1934, Rubem Braga diante das epidemias que maltratavam o país de norte a sul, como tem feito agora a pandemia, escreveu sobre os mortos de Manaus, recordando, como me recordo, agora, de poema de Mário de Andrade. Fez-me igualmente lembrar de viagem que fiz pelo rio Amazonas quando repetia muitos dos versos deste mesmo poema. Entenderiam o senhor capitão e o general da saúde que lá vivem brasileiros como eles, como eu, como todos?

Se lhe escrevo contando que os manauaras, descendentes dos mais antigos moradores desta terra, com mais direito a ela do que qualquer um de nós, estão morrendo pelos corredores de hospital, pelas ruas da cidade, nas cadeiras de rodas que os conduzem ao posto médico mais próximo, entenderão? Ou dirá o capitão que de algo se morre como reagiu de outra feita.

Não lhe pesa consciência, coração e alma, com declarações assim, sobretudo quando vê as cenas de horror que se acercam de nós graças à tecnologia de hoje? Ou nada lhe pesa?

Ao observar como nos olha a todos, o jeito como nos fala, a expressão de seus olhos e o desrespeito que demonstra ter caminhando sem máscaras por Brasília, tentando impor-nos remédio que, inadvertidamente mandou preparar em quantidade desmedida em laboratório do exército brasileiro mesmo sabendo que não havia resposta científica positiva para seu uso, concluo que parece não incomodar-se como me incomodo e outros tantos milhões de pessoas se incomodam com a inoperância do governo diante da gravidade dos fatos.

O mundo está assombrado com os doentes e os mortos de Manaus! “Jogados sobre a mesa, e a mesa é vasta e fria como a tristeza do mundo, eu me debruço e eles projetam sobre minha alma suas sombras acusativas.”

Por certo supõem que, terminada a notícia nas redes televisivas, já não mais pensarei na agonia vivida naquele pedação de terra. Ledo engano. Sofro e sei que muitos, como eu, sofrem também.

Os mortos de Manaus parecem falar comigo, nos caixões que seguem para enterros coletivos. Gemem sua última dor e fazem-me saber do quanto desejavam sobreviver para - quem sabe? - lutar contra o descaso de todos os que, com eles, elegemos para darem ao país, de ponta a ponta, alguma dignidade.

Mário de Andrade, o turista aprendiz, grita a meus ouvidos um trecho de seu poema: “Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus!/ muito longe de mim/ Na escuridão ativa da noite que caiu / Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,/ Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,/ Faz pouco se deitou, está dormindo./ Esse homem é brasileiro que nem eu.”

“A força da vida – sabei, ó mortos, – a força da vida mais mesquinha é um milagre de todo dia.”

Até quando prosseguirá assim?

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