O mundo sem máscaras

Por David Chagas | 21/12/2020 | Tempo de leitura: 3 min

Noite destas me esqueci não do que pensava, mas de mim. Muito pensar deixa escapar da memória a existência real. Alongar o instante anuvia o pensamento e nos transporta não se sabe bem para onde.

Nunca lhe ocorreu? Ou foge desse acontecimento que alumbra e amedronta ao mesmo tempo? Deveria dar-se a viver algo assim! É como juntar-se às estrelas e, no traçado delas, penetrar o universo, à procura. Não importa de quê. Importa buscar. Aventurar-se. É como entender, afinal, carcomido em anos e sentimentos, o primeiro sentido da vida. No momento da luz, nada se sabe.

Soubesse, quantos se atreveriam? Demora-se a sentir o perigo. Melhor assim.
A lição aprendida tem exigido muito. Nem todos se renderam ao peso dos dias. Há, no entanto, aqueles que, voltados para a natureza, souberam fazer disso lição que exige prosseguir sem exaltar-se, suportando o infortúnio. A natureza é assim. Aceita as intempéries sem porquês. Avança na expectativa de mudança, ajeitando-se para suportar enquanto dura o acontecido. Por isso contei a história de “seu” Pitico. Outros há que me enriquecem com histórias como estas e se aprendo é porque me interesso.

Gente simples, humilde, capaz de demonstrar, na ação e gesto, sabedoria que supera qualquer especulação filosófica. Dia destes, num Papo de Segunda, o poeta e filósofo Francisco Bosco, estabeleceu, com clareza, a diferença existente entre estes e o outro, fazendo-se exemplo. Ele e Emicida, o rapper, a quem também admiro. “Sou filósofo”, disse ele. E concluiu: Emicida, sábio. O cantor e compositor, num gesto de humildade, inclinou a cabeça agradecido. Concordei com Bosco e, na solidão, aplaudi.

Entendo ser bom estar próximo de gente assim, sem malícia, inocente, dando à vida o sentido que tem sem estar em busca de explicação para tudo. É como se preservasse o estado de candura, a singeleza da infância. Pouco importa saber da imensidão do universo ou reconhecer o que nele se esconde.

Do sol, alvorecer e luz. Da lua, alumiar a noite. Vez por outra observa, mas nem sempre nota, a variação de contornos. Ignora o encanto que desperta em sonhadores. Sabe, das influências que exerce, não por senti-las, mas por ouvir dizer. Vê São Jorge, com dragão e punhal, e tem notícias de que altera o comportamento do mar. Mar? Não conhece. Reconhece o pedaço de chão onde vive, o mundo que o circunda. É o bastante.

Não se entrega a este interesse dado a quem deseja entender a razão de todas as coisas. Menos ainda observar um ponto qualquer que possa levar a desvendar mistérios. Que prossigam mistérios!

Diferente deste, obrigo-me a dar voltas para fazê-lo entender, caro leitor, que aqui estou – desassossego danado - entregue a pensamentos, em aventura ousada, na busca desmedida de porquês. Falta-me a ingenuidade de ser tão-somente.

Por conta da pandemia – tudo agora se justifica neste mal que assombra o mundo – meter-me para dentro de mim mesmo virou hábito. Bom seria ter a dimensão humana de quem, na ignorância, pouco quer saber do que ocorre, dando à vida o sentido latente da vida. Pouco sabe do mal que assombra e mata. Desconhece até mesmo o descaso e a arrogância de quem sente prazer em espalhar desatinos.

Há, no meu caminho, personagens assim. Gosto muito. Falam pouco, mas olham com afeto e ternura. Cuidadosos, tratam cada palavra com reverência e cuidado. Prosear medido. Boca fechada, sem máscara. Ignoram o vírus. Não suportam o mal.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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