Contar é dificultoso. Mas você me entende!

Por David Chagas | 30/11/2020 | Tempo de leitura: 3 min

Menino, minha mãe, comigo, sentada à mesa de jantar, ensinava-me a ler, orgulhosa, o velho Diário, hoje, com cento e trinta e quatro anos. Contava-me histórias do pai, fundador desta publicação, e das pessoas em seu entorno, um conjunto de sete filhos, numa primeira leva, e uma só filha, ela, num segundo momento, a quem ensinou a devotar-se a livros e estudos. Menina ainda, morto o pai, guardou, isto sim, para sempre, o peso da melancolia, da ausência doída, agravada pelo entorno do mal dos que, com ela, eram personagens da mesma história, em capítulos distintos.

Soube alijar-se do mal, com maestria. Não se envolveu jamais pelo manto que os encobria, cujo avesso não se revela. Fez-se distante do impossível, como se referia a tudo que Deus não espera de humanos. Condenava, com elegância, o comportamento de sociedade como esta em que nos toca estar e faz nobre o nome cujas patacas reluzem e, com sua luz falsa, abrem caminhos.

Com delicadeza e sabedoria únicas, minha mãe contava estas histórias para apresentar-nos a boa origem que nos antecedera no velho e querido avô jornalista. Fácil perceber no olhar perdido ou no rosto triste, como lhe era dificultoso remexer este enredo amargo. Anos mais tarde, um destes aparentados que não se reconhece, me fez saber que tinha igual opinião a respeito daqueles que fizeram parte desta história. Não soube explicar com exatidão, mas percebia, na escuridão de sua ignorância, que a sociedade fingia não reconhecer tanto mal, em razão do nome que ganhara prestígio e brilho.

É nisso que centro minha conversa de hoje. Parto de experiência minha, para chegar à crítica. Falta-me o texto de Eça e sua história tão próxima da de minha mãe. Falta-me o brilho de Machado de Assis, para tirar daqui o bafio que resta de grupo humano marcado pela falta de espírito aberto, preocupado exclusivamente por interesse material, na busca desmedida de êxito. Basta de fingimento, de hipocrisia, de histórias pela metade sem chegar jamais à urdidura da tela. Basta de aparência. Ater-se ao novo, para fugir de vez do conservadorismo político, social, cultural, emoldurado por falso moralismo,

Rever história para observar como andam piorados os cenários traçados por esta equivocada tradição. Se a vida me concede envelhecer, traga, na idade alcançada, o registro da maturidade, muito maior que do envelhecimento. Hora de fugir do padrão determinado pela sociedade, sem contrariar a grande maioria dos que fingem ser felizes, sendo, não sei se felizes já que se acocoraram no conforto da percepção do que é moralmente certo ou errado, sem ferir nem ferir-se.

Tornar-se maduro é deixar a pabulagem de lado. É mirar-se em Francisco, o de Assis. É ser, sobretudo. Dar sentido próprio à condição de ser. Os atos e motivos, agora individuais, pouco ou nada se importam com o coletivo, insurgindo-se contra o comportamento burguês, desaferrando-se da impertinência de dogmas.

Ao denunciar a verdade, ao fustigar uma sociedade retesada em erros e vícios acumulados, injusta, desigual, comandada, nos diferentes pedaços do mundo, por cidadãos despreparados, muitas vezes, outras tantas, desiquilibrados, faz-se ao menos um esforço para livrar, ainda que um só indivíduo do perigo de subjugar-se.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.