Diga-me como ser pão

Por David Chagas | 26/10/2020 | Tempo de leitura: 3 min

Minha amiga não teve filhos. Sonhava tê-los. Como não havia qualquer perspectiva de realizar-se como mãe buscou a alternativa mais comum: adotar, sem incorporar ao vocabulário a ideia de ser aquele, filho do coração. Resultado de escolha. O menino saberia ter vindo preencher a lacuna que a barriga não pôde cumprir por razões diversas. Adotar é sempre uma opção boa. Adotar com amor requer maturidade e preparo. Dividir o alimento, dar alento e paz a quem tem fome, remedeia a injustiça e dá sentido ao exemplo de Cristo, Pão da Vida.

Outra amiga fez igual. Andou por um destes orfanatos e viu por lá uma meninazinha graciosa entregue a companheiros distintos dela e sentiu estar ali o lastro que faltava em seu lar. Uso lastro, por ver no substantivo, o sentido que quero dar a quem dá alento, abraça a debilidade, quer ser alimento e maná. Mesmo que não seja este o real motivo da adoção, no fundo, quem se aventura busca, de algum modo, amparar. Assim espero.

Outra senhora a quem conheço, trouxe a ambiente de discórdia, confusão, raiva, a criança escolhida. Nunca mais soube dela, mas tenho, na memória, a expressão reveladora das marcas deixadas neste tempo fundamental para formar-se e começar a entender a vida. Que lástima! Rogo a Deus para que tenha sido, de algum modo, feliz.

Não lhes vou adiantar nada quanto ao resultado destes encontros casuais para não decepcionar quem opta por alternativa igual e se prepara para ter como seu o que, biologicamente, não lhe foi dado. Quero, inclusive, revelar que sou adepto da prática e entendo ser esta uma solução para minimizar os problemas sociais graves de país que ignora as mazelas criadas pela desigualdade social e, no caso específico, pela ausência de orientação, em especial entre os vulneráveis, ainda que o planejamento familiar, seja direito prescrito na Constituição Federal.

Tenho pensado por demais nestas crianças, nascidas ao léu, fruto da fome, do abandono, da vida na rua, sem eira nem beira, resultado da ausência total do Estado, da falta, hoje mais que ontem, de políticas públicas de promoção e inclusão social com ênfase em promover cidadania. Observo, com pesar absoluto, o crescimento destas desventuras neste ano de 2020. Sempre me incomodei com isto. Já aprendera com Maiakovski: gente é sol. Tem que brilhar. Mais tarde, Caetano, inspirado nele, completou: Brilhar. Não morrer de fome. O Brasil, meu Deus, por seus governantes, na contramão disso. E, ao valer-me de lição de Maiakovski, por certo, passarão a dizer que sou comunista.

Esta aflição me tem perturbado os dias. Vejo cada vez mais, um número grande de crianças pelas ruas da cidade, criadas ao Deus dará, sem saber, ao certo, o que é ter casa, como seria a vida se pudessem reunir-se em torno da mesa, ter pão, ir à escola, brincar, brincar junto a outras crianças, numa relação de afeto e crescimento moral necessários no correr da vida.

Assisti há pouco reportagem mostrando a cara de milhares de crianças nossas – nossas! olhar de medo, algumas, de dor, outras tantas, e de fome, a grande maioria. O Brasil, neste tempo de recuos e tropeços, alcança, de modo assustador o limiar da pobreza absoluta. Forma injusta de permitir que estas crianças, soltas na praça, mãos esticadas à espera de alimento, mesmo com sorriso no rosto e forçada autonomia movida pelo despreparo do Estado, sonham com o futuro.

Quisera todos aprendessem como ser pão. Em especial os que falam em seu nome com autoridade que não têm.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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