Quino morreu? Eta coisa triste!

Por David Chagas | 08/10/2020 | Tempo de leitura: 3 min

Quino se despede da vida. Fica o olhar de Mafalda procurando por ele no infinito. Fica sua genialidade nos questionamentos dela. Fica a sua luz, ensinando a escolher nas eleições, criticando o poder com sabedoria e adequação, valorizando os professores, revelando nossa fragilidade diante do poder injusto e corrupto graças à incrível inteligência e vivacidade de Mafalda.

Fica, sobretudo, Mafalda agarrada ao globo envolto numa faixa pedindo silêncio para anunciar verdade inquestionável: “irresponsáveis trabalhando!”.

Eu que soube aprender, como tantos no mundo todo, com Mafalda, esta filha de Quino, agora, quando conta 56 anos, posso senti-la igual, com igual vigor. Sorte encontrá-la na coleção guardada, tendo vencido o tempo.

Quino! Emocionado. Muito emocionado. Senti, à sua despedida, o peso de sua ausência, olhei-me no espelho, passei as mãos sobre os pelos brancos da barba, vi meus ex-alunos, a quem apresentei suas histórias, tantos, tão queridos, já senhores de si e da vida e entendi que estou velho. Abanquei-me na escrivaninha do escritório e ditei ao tempo, esta carta, cujo destinatário sou eu mesmo!

Encontrei em minha casa suas brochuras guardadas há décadas por todos nós, tesouro escondido. Lá, pensei que não deveria estar à procura do passado. Não por não querer. Para evitar lembranças. Há fantasmas por todo lado. Não os vejo, bem sei, mas andam por este espaço sugerindo, provocando memória, incomodando coração e mente.

O espelho da entrada parece sentir prazer em revelar, impiedoso, a angústia que o tempo provoca. Registra rugas, retinas e olhar cansados, abatimento na alma. Nenhum alento. Quantas mudanças no rosto e no corpo de hoje. Só Mafalda permanece igual, mesmo olhar, mesmo semblante, mesma ironia. Abatido e triste estou eu, não ela, ao despedir-me de Quino certificando-me uma vez mais de que tudo passa.

Bom seria, como em dia de chuva pesada, que tudo se transformasse, ao fim do temporal, sorvendo poeira velha de móveis, de cortinas, de lampadários, para afastar o que foi oferecendo o que é.

Não irei ao jardim. Mafalda não está. Miguelito também não. Recolheram-se no silêncio das últimas publicações para certificarem-se de que permanecerão para sempre sugerindo nisto a grandeza e a perpetuidade do criador.

Tudo revela de algum modo como se comporta o tempo. Até mesmo o jardim que traz nos canteiros com brotos novos, árvores velhas, grama amarelecida. As roseiras envelhecidas insistem em histórias acabadas. A fragilidade do caule é sua forma de dizer que preferiam fugir deste compromisso de estar por estar, porque seu desejo, agora, seria mudar a paisagem.

No eido anexo, pedaço grande de terra, onde havia cantoria de pássaros e por onde corriam de um lado para o outro os cães já mortos. A jabuticabeira. Pouca chuva neste ano de ressentimentos, sol intenso, calor excessivo, sem frutos graúdos, mas com graça e brilho iguais. Os frutos também cutucam lembranças. Ao sabor deles, açucaradas.

Saio à rua. Não quero passar à frente da escola onde estudei um dia. Os alunos em desalinho, amontando motos ou bicicletas no jardim da frente onde caminhei livre pensando o futuro, desrespeitam o passado.

Não era por ali que adentrava ao templo. Era pelos fundos para descobrir aos poucos a história guardada. Os estudantes de antes deixavam naqueles espaços não sua presença, mas o brilho de seu desempenho. Nada como a alegria que impulsionava a estudantada daqueles anos, trocando conversa boa sobre o último filme de Pasolini exibido na sessão noturna, trazendo para as telas discussões em torno da vida. E Mafalda, claro, iluminando tudo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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