Ah, a memória, sempre a memória

Por David Chagas | 21/09/2020 | Tempo de leitura: 3 min

Pouca gente sabe que fui, antes de sair do Brasil, professor na Universidade Federal do Mato Grosso, em seus diferentes campi, onde me obriguei a correr o estado, em ônibus, para ensinar, suportando com jovialidade e alegria o calor esbraseado daquela região de onde trago, na memória, marcas muito significativas. Dentre tantas, a paisagem deslumbrante dos lugares visitados, o Pantanal.

Foram dois anos reconhecendo espaço que não era meu, em tudo diferente, mas que permitiu comportar-me como se fora parte da rua onde cresci antes de sair pelo mundo. Cenário, personagens e enredos escritos neste domingo que abre a primavera, lembram conto, mas nada a ser lido aqui, foi inventado.

Dona Mariazinha, uma senhora evangélica que orava como poucos, revelando na expressão, a força, e no brilho do olhar, a fé, presidia encontro num terreiro de chácara, de ilustre jogador de basquete, frequentada por mim com fraterna assiduidade. Ao aproximar-se, mãos postas sobre minha cabeça, por inspiração divina, quero crer, predisse, lendo trecho bíblico que escolhera ao acaso, que sairia do meu canto, abandonaria o ninho e traçaria rota e voo inimagináveis.

Poucos ouviram isto. Menos ainda souberam, a não ser os meus. O leitor poderá lembrar-se, num primeiro momento, de Hamlet a Horácio ou de Machado de Assis, na Cartomante, supondo a fala do primeiro sobre mistérios entre céu e terra que nem mesmo a filosofia pode elucidar. Naquela noite de céu estrelado e lua de São Jorge, no entanto, vivi, no culto, experiência que não se reparte.

A mim me coube, tão somente, deixar-me envolver pela palavra, ouvir e esperar pelo dia em que chegasse a uma terra coberta de vegetação, com plantas que dessem frutos, produzissem sementes e animais e aves e peixes de diferentes espécies. Passados dois anos, não mais que isto, fui chamado para assumir aulas na universidade do Mato Grosso. De Cuiabá sabia tão somente ter sido rota de bandeirantes na busca de ouro e pedras preciosas e ser o centro geodésico da América do Sul. Não supunha apaixonar-me por cidade cujo calor me devorava, obrigando-me a estar constantemente em busca de ar condicionado.

Zezé Palo, amiga querida e professora da PUC-SP, é quem me traz à memória estas lembranças ao enviar-me notícia sobre homenagem prestada ao filho, Haroldo Palo Júnior, especial amigo, quem foi um dos mais importantes fotógrafos brasileiros, autor de livros consagrados sobre o Pantanal e a Antártica, internacionalmente reconhecido pelo caráter artístico e documental de seu trabalho, responsável, por divulgar, por mais de quarenta anos, paisagens, animais, pessoas integrados a este ecossistema tão diverso.

Morto em 2017, oferece seu nome à brigada de Incêndio Alto Pantanal, recém-criada pelo Instituto Homem Pantaneiro, para tentar impedir que prossigam destruindo Patrimônio Natural, nosso, que a ONU consagrou como de toda a Humanidade. Justíssimo levar seu nome pelo que soube escrever com vida dedicada a preservação da natureza.

Fui amigo de Haroldo Palo e responsável por sua primeira exposição individual, quando ainda não se conhecia o pesquisador extraordinário. Juntei seu trabalho em branco e preto a poemas de Drummond, em Lição de Coisas. Juntos, poemas e fotografias, revelavam um fotógrafo de alma e ofício, como Drummond, um poeta de oficio e alma.

“Assim acordados,/ assim lúcidos, severos, ou assim abandonados,/” deixemo-nos “/ levar na palma do tempo – mas o tempo não existe -,/” um mundo que seja: o Mundo.

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