Tentando decifrar a alma humana

Por David Chagas | 31/08/2020 | Tempo de leitura: 3 min

Procurou-me no fim da tarde para contar-me ser, há um mês, devorado por ideias que o supliciam. De que modo se alojaram nele fazendo-o incapaz de demovê-las? Haverá oração que as demova? A que santo deve dirigir-se para exorcizar-se, empurrando para longe o espírito obsessor, insistente e maldoso? Haveria, na atual conjuntura do planeta, santo disponível para atendimento imediato ou estariam atarefados com insistentes pedidos em favor do mundo assustado com o mal que o aflige?

Chego a pensar, com ele, que este pensamento endemoniado terá sido resultado da pandemia a nos atormentar a todos. Sem falar no desgoverno que nos rege e leva a estados de alma indescritíveis.

Sinto-me assim, quando se avolumam pensamentos indevidos, injustiças na ação ou na palavra, mentiras desmedidas. A perturbação é tal a ponto de impedir-me ver o céu com a limpidez e transparência que o sol oferece. Tive pena dele ao relatar-me, como tenho de mim quando o inconsciente me obriga a mergulhar nestes mistérios tenebrosos e insondáveis de mim mesmo.

Nesta manhã, observando o que me apresenta aos olhos o que a vista alcança, chamou-me a atenção um bando de pássaros coloridos. Encantei-me com eles e pude deixar-me envolver por sua beleza, pelo colorido que ofereciam, formando bando, sem estarem juntos, sempre dois a dois, em voo hábil, com destreza de movimentos, ziguezagueando como se brincassem um com o outro, parceria mantida, num malabarismo perfeito entre todos. Ao aproximarem-se de mim, me ensurdeceram. O barulho era tanto, a algazarra tamanha, que me obrigaram a entender que, na verdade, não eram eles que me atormentavam, mas o despertar de pensamentos e ideias que ficaram pela minha cabeça, as minhas e as de meu interlocutor de dias atrás.

E uma vez mais esta barulheira e aquelas ideias se atropelaram de tal forma que a personagem se pôs diante de mim desfazendo a tessitura de outro, construída por toda uma vida com tal harmonia, para, agora, revelar-se, dissonante.

O que faço? Estrangulo as pobres baitacas tagarelas com seu grito estridente e ensurdecedor ou tento, ainda uma vez, encontrar paz que me permita compor o que supus ser um dia a alma quando ainda no primeiro alinhavo pouco ou nada sabia da vida?

Entendo o despertar que a passarada irrequieta provoca. Não me causa mal algum. Na gritaria danada, cutucam, apenas, o que me devora. Pudera ter quem me procurou antes para ajudá-lo a entender os mecanismos da mente. Juntos chegaríamos a alguma conclusão entre parecer e ser? E se o escritor estiver certo ao supor duas almas, uma exterior, outra interior, desentendidas em suas pretensões? Divago? Dentre tantos mistérios, haverá espírito capaz de tormenta e dano perseguindo a psique humana de tal forma, atropelando ideias, provocando ações?

A vida me tem ensinado – estaria equivocada com sua lição quase diária – que a natureza revela o que o homem não sabe, por si, revelar, senão por atitudes. Veja o que tento dizer e se pode concordar comigo: a passarada é o que verdadeiramente parece. Sucedeu-me comprovar uma vez mais com as maritacas alvissareiras e sua organizada estripulia.

A individuação, fator determinante para melhor rendimento social, obriga-me a mergulhar para dentro de mim mesmo. Eu, e o que por trás de mim anda, como se sugerisse que para entender o outro é necessário entender-se a si mesmo. O mestre, ao ensinar ao humano observar a força de uma necessidade objetiva que prende a alma frouxa, dona de vontade supostamente inútil, ao corpo, parecia provar que vida, é o que na alma existe.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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