Se tens olhos, vê!

Por David Chagas | 24/08/2020 | Tempo de leitura: 3 min

Tento deixar-me cortar para recomeçar com alegria, com a vivacidade de antes, o desejo inconteste de esperança que sempre me norteou a vida e agora, sol no ocaso, insiste em dissolver-se.

Chego, em cada poda, por vezes drástica e cruel, quando me ceifam galhos de forma dolorosa, a suportar o inimaginável. Com esforço desmedido, tento prender à alma os sonhos, supondo novos limites para novo arrebento, brotadura nova, confiante na realização do desejo e do querer. Se é renovação, onde a fé de que o broto seja mais forte e muito mais vigoroso?

Neste ano, no entanto, corte temporão, completamente fora do tempo imaginado, com força de foice afiada, atingiu tudo e todos, derrubando árvores, galhos, folhas amarelecidas, para, em seguida, alcançar o velho e o novo, até mesmo o que estava por surgir para surpreender ou encantar o mundo.

Chamam pandêmico a este tempo de incertezas, devastação e medo. Num primeiro instante, mal surgida a peste, o anelo de que seria breve e breve passaria. Os dias se foram somando e nada! Recolhi-me, então, ao isolamento, alimentando a expectativa de que findo, festejaríamos uma nova aurora, sobreviventes que seríamos. A incerteza, no entanto, prevalece.

Buscar, na natureza, o tom. Hora, então, de espelhar-se no aprendizado que os japoneses encontraram nas lições das cerejeiras, fazendo de cada pétala caída, símbolo de vida breve, ao mesmo tempo ensinando, com a perda, a importância de renovar-se, reconhecendo neste exercício a brevidade do tempo.

Isto aprendi antes mesmo da poética e bela lição de Manoel de Barros quando, versejando, escreveu que “o tempo só anda de ida./ A gente nasce, cresce amadurece envelhece e morre.”

Ao dar-me conta disto - Meu Deus! - quanto já cumpri disto tudo? Ando pela última fase. Fazer o quê? Num último verso, o poeta sugere esperança e dita: amarra o tempo no poste!

Na memória, de repente, ao lado dele quando afirma que em amarrar o tempo no poste está a ciência da poesia, reaparece das minhas leituras, outra escritora notável, Cecília Meireles, propondo ser como a primavera para ressurgir sempre.

O ideal, agora, seria amarrar o tempo no poste. Ao proceder assim, como ressurgir a cada ano, feito primavera?

Quanta lição nos dá a natureza! Há, no entanto, quem não veja, nem entenda, nem aprenda. Estamos rodeados de cegos. Sei bem a razão, mas não ouso dizer. Sei apenas que estão cegos. Cegueira voluntária.

Gente jovem ainda, por descuido, tomando conta do que há de melhor consegue, ainda, apesar dele, esparramar-se pelo país em florestas e pantanais. Não vê nem repara. Não só ele. Muitos como ele. Triste é pensar que, comandando políticas de meio ambiente, poderia chamar a atenção de seus pares, para que, mirando a natureza e aprendendo com ela, entendessem melhor o mal que se impõe e nos rouba vidas.

Faço esforço sobre-humano tentando renovar-me a cada golpe que a vida impõe. Como este, por exemplo. Coragem não me tem faltado da que me exige a vida. Não é fácil. Não tem sido fácil. Tento, ao menos, aprender a olhar e, olhando, sentir. Importante é entender que “não é possível dar o que já existe nem atribuir outro mundo de imagens além daquele que há em cada alma. Nada se pode dar a não ser a oportunidade, o impulso, a chave.”

A chave? Exato, a senha! É o que fica como sugestão, renovando uma vez mais, em mim, em ti, em nós, a esperança de entender o que nos tem ensinado a pandemia com sua lancinante poda: que sejamos melhores, mais simples, mais humildes, mais cordiais e capazes de tornar melhor, vendo e sentindo, nosso próprio mundo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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