O que foi, é?

Por David Chagas | 03/08/2020 | Tempo de leitura: 3 min

As sensações, as emoções, as primeiras reações captadas nos primeiros tempos de descobertas podem fugir à lembrança bem mais tarde, mas estão, de algum modo, presas à memória afetiva e, de algum modo, se reorganizam no momento exato em que se pensa nelas. Brotam num suspiro, lágrima, num sorriso tímido, sem recuperar jamais a cor e o tom do instante da primeira visão, quando tudo, por certo, era surpreendentemente novo e se apresentou como é, sem porquês.

Na maturidade, sentir as flores, olhar o céu, ver o sol, tecer manhãs e tardes com alegria ou tristeza, encantar-se com a lua, enamorar-se da paisagem próxima ou distante é, em tudo, diferente do primeiro instante. Como posso afirmar isto se já não lembro como fora? Sei, apenas, como é.

O encantamento permanece, com igual brilho, quando a velhice aporta. Falta o alumbramento. A emoção, as sensações vêm carregadas de experiências as mais diversas. Já não há surpresa ou a emoção é outra? Persiste, sinto, um pouco da ingenuidade que exige aprender e seguir aprendendo a vida toda.

Passada a fase de deliciosas descobertas, vem o interesse em saber disso e daquilo, quem, quando, a razão do nome. Que bobagem! Tudo deveria seguir o mesmo curso. Admirar, ver, dar ao olhar o prazer de pôr-se a uma viva luz de puro encantamento. Sentir.

Pena não me lembrar como gostaria do ser amiudado, acobertado pela ternura, olhar aguçado. Pude entender o bom deste tempo ao observar meus netos, este presente que Deus oferece em algum momento da vida, por alguma razão que só ele mesmo sabe, quando, num suspiro profundo, sorriso escancarado, cresciam o olhar diante do que viam, donos da alegria do momento. Toda vez me perguntava: terá sido assim comigo? Como terei reagido diante do que via? Quanto de alegria ofereci aos que constataram a expressão do meu rosto diante do desconhecido, carregado de curiosidade, sem entender ainda?

Quanto rouba de vida o crescimento! Como teria sido bom permanecer com a verdade do instante, sem saber ao certo o que era ou para que serviria. Talvez seja por isso que, em algum momento da vida, é preciso recobrar a criança na criança que perambula pela casa, ensinando, refazendo com suas emoções, as emoções contidas.

Quando o menor dos meus, ao descobrir o espelho, me deu resposta a tantas perguntas, pude aclarar internamente tudo o que esta superfície lisa e polida, este pedaço de vidro, representava. Para o pequeno, a alegria da descoberta, o encontro com sua imagem. Entenderia tratar-se de si mesmo? Ou supôs outro? A quem reconheceria? Só quando me pus com ele diante do espelho, no esticar os bracinhos, entendi que me reconhecia. Saberia ou não que, comigo, a imagem refletida era a sua?

O pequeno, na descoberta, me fazia revisar o que Otávio Paz ensinara: “o traço distintivo do homem não consiste tanto em ser um ente de palavras quanto na sua possibilidade de ser ‘outro’.” Na minha mente, um tanto cansada, preparando a velhice, teorias de identificação, o espelho e seus estádios. A ele pouco importa ver-se ou ver o outro. A mim, obrigo-me a especular detalhadamente tudo o que a imagem me revela. Quanto desejaria a visão dele, feliz, sem teorizar nada. Sentindo, apenas.

Quanto me conta a imagem refletida. Descubro no traço, na expressão contida, nas marcas, retalhos meus. Para o pequeno, na descoberta de sua própria imagem mesmo supondo outro, o espelho revelaria ou não alteridade? O suspirar profundo demonstra tão somente o prazer da descoberta.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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