Relatos de Viagem: Breves

Por David Chagas | 27/07/2020 | Tempo de leitura: 3 min

Volto à viagem. Por hoje, não mais. É preciso ir adiante e parar de remexer o passado por melhor que pareça. Acaba, por vezes, por deixar rastro de tristeza. Quantos dos que estiveram comigo ou se interessaram por saber da viagem, não estão mais. Quantos se perderam neste tempo que me separa das histórias recontadas aqui? Por meses, à minha volta, comentava o prazer de estar no catamarã descobrindo parte destes brasis, deitando o olhar no seringal profundo. Cutucar a memória, toca fundo o coração da gente, faz ver que a vida, em ritmo acelerado, se mostra caroável e tudo aquilo que foi visto com vigor e beleza enfrenta a desolação das queimadas com poderoso consentimento.

20 de janeiro de 1984. A embarcação prossegue a rota, rio abaixo. O comandante, de uma camaradagem única, recomenda observar a paisagem em detalhes a perder de vista. Na imensidão do rio, as canoas, minúsculas na distância e a floresta.

Releio o que escrevi aos meus, repenso e, “de sopetão, sinto um friúme por dentro”. Trêmulo e comovido, era como se repetisse entrar pelo Estreito para assistir outra vez na imensidão das águas, ao mesmo tempo encantado com o que via e assustado com a cena, a criançada, em frágeis canoas, arriscando a vida para a bendição do dia.

Ao imbicar no Estreito, o comandante avisa. Todos a postos para ver o Brasil miserável, faminto, “falado numa língua curumim”. Inacreditável estar ali. Lúcia Abdalla, saudosa e querida amiga, conhecedora desta região, me orientara, em São Paulo, onde vivia, antes da viagem, a que levasse comigo o que pudesse para oferecer às crianças ribeirinhas. O que vejo é, sem dúvida, um problema social sem precedentes. Crianças pequeninas lutando duramente pela sobrevivência, arriscando a vida ao participar de espetáculo aterrador. O Estado, como de costume, ausente.

Por outro lado, o apoio, a solidariedade dos viajantes, oferecendo do que dispõem em benefício delas. Os que não se prepararam para isso, oferecem objetos pessoais, doces, bolachas, emocionados. Pareço ouvir Mário de Andrade em carta a Manuel Bandeira ao estar nestes mesmos lugares: “o importante não é ficar, é viver. Eu vivo. Meu destino não é ficar. Meu destino é lembrar que existem mais coisas que as vistas e ouvidas por todos”.

A travessia do Estreito de Breves, conjunto de pequenas ilhas e rios, a cada passagem de embarcação, repete esse ritual da tradição popular fazendo oferendas às crianças como se fazia antes às divindades do fundo dos rios, em troca de viagem tranquila. Elas, desesperadamente, agarram o que podem para sobreviver.

De Breves ao sul da Ilha do Marajó, levo comigo o nome dos rios, a maioria de origem tupi. Tem, nesse enxame de ilhas, o Parauhaú, o Pracaxi, o Mapuá. Sei não o que significa, mas guardo comigo a melodia ao ouvir os ribeirinhos dizerem. Caminho pela cidade. Encontro a Igreja Matriz de Sant’Ana. 1861. Inacreditável. A cidade, fundada tem no Trapiche Municipal, o emblema de sua importância histórica.

Em seus limites, Portel, Bagre e Melgaço. Nem sei, andando pela cidade, pra que lado ficam, mas gosto dos nomes. Tenho vontade de repetir Mário de Andrade quando esteve em Belém, citando nomes dos lugares por onde andava. Como ele, tenho prazer nisso.

O navio chama para prosseguir viagem. Há botos saudando o embarque, enfeitando as águas com sua cor e dando aos viajantes toda sua simpatia. Esparramados pelo Amazonas, por certo, aparecerão inúmeras vezes durante a viagem obrigando-nos a saber da lenda que vem deles, de sua presença no rio.

Interessa agora chegar a Santarém, vivendo novos dias e noites de aventura amazônica. Em Santarém, visitar Alter do Chão.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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