Relatos de Viagem

Por David Chagas | 17/07/2020 | Tempo de leitura: 3 min

Em 1984, jovem ainda, tratei de fazer a rota traçada nos mapas escolares, quando, estudando a região norte como se desenhava na época, sonhava com terras caídas e pororoca, mistérios fascinantes em torno da Amazônia. Fui para reconhecer o aprendido e ver se tudo era como supunha. Acolhido que fora por um grupo de alemães instalados num determinado canto do catamarã, vivi dias inesquecíveis, vislumbrando a floresta, observando botos e descobrindo, in loco, as terras caídas, ilhas flutuantes que, ao surgir na imensidão do rio, me assombravam.

Passados quase quarenta anos, revisitando os rabiscos enviados, optei por publicar, senão tudo, algumas impressões de lugares, pessoas, coisas vistasao longo de quase dez dias de viagem, visitando paradas ribeirinhas, comendo frutas locais e confirmando ser aquele homem perdido na vastidão das águas, brasileiro “que nem eu!”

“Em geral, concebemos as viagens como um deslocamento no espaço. É pouco. Uma viagem inscreve-se simultaneamente no espaço, no tempo e na hierarquia social.” Sei que meus relatos não chegam a tanto, mas repito aqui trechos da época que aguçam lembranças e me permitem reviver o que já foi.

(Belém, quarta-feira, 16.1.1984). Saíà noite de Belém na expectativa do Estreito de Breves, como se desenhasse na imensidão das águas, o mapa feito à mão livre no quarto ano primário, sob o olhar severo de dona Dinorah, imaginando como seria estar entre terra e terra passando por um estreito deixado atrás, na foz do rio Amazonas. Com esforço, me fora impossível saber tanta água a ponto de não reconhecer se navego por rio ou mar. O céu estrelado oferecenoites inesquecíveis e o dia permite ver estas terras sem limites.

Tentei, na fila imensa do cais, supor que seria uma viagem como tantas outras, mas vejo que, em nada se assemelha àquelas da infância. Falta-me a companhia de vocês. O peso da solidão implica insegurança e saudade! Saudade das conversas que trocávamos ao longo das horas vividas na composição férrea, em busca da capital,ou pelo interior de São Paulo até alcançar as estações onde viveram, no início da vida de casados, nossos pais.

Ficou em mim, desta época, o quanto apreciávamos estarjuntos, os quatro, inventando histórias. Mais tarde, adultos, chamaríamos crônica. No conforto dos carros de primeira classe onde nos sentávamos, dois a dois, sob o olhar vigilante de nossos pais, rindo muito e valendo-nos de cenários variados, obrigávamo-nos a comparar as cidades, uma a uma, com a em que vivíamos. Paisagens a perder de vista, algumas idênticas a que conhecíamos bem, onde vivíamos dias calmos, tranquilos, com tudo que a vida rural oferecia.Mais tarde, pude saber da vida besta: “casas entre bananeiras/ mulheres entre laranjeiras/ pomar amor cantar”.Hoje sei ser melhor que o movimento das ruas, o povaréu na calçada, as compras nos grandes magazines, o bonde!

Na noite em que a embarcação, às 22 horas soltou seu gritosentido, mas forte, despedindo-se do porto e da cidade, nada sugeria em mim os passeios da infância. “Belém é a cidade principal da Polinésia. Mandaram vir uma imigração de malaios e no vão das mangueiras nasceu Belém do Pará. Engraçado é que a gente a todo momento imagina que vive no Brasil, mas é fantástica a sensação que se tem, de estar no Cairo. Não posso atinar porque… Mangueira, o Cairo não possui mangueiras evaporando-se das ruas… Não possui o sujeito passeando com um porco-do-mato na correntinha…”

Se a aventura é nova, novo será o cenário e novas as histórias. Vou contando, pari passu, o que viver aqui.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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