Cante ao sol. Deixe corar a tarde. Venere a noite

Por David Chagas | 22/06/2020 | Tempo de leitura: 3 min

Escreve, com um resíduo de tristeza, mas escrever. O vírus vai delapidando vidas e o Capitão destruindo a pátria minha, a patriazinha, a minha pátria. Não a dele!

Não culpem a reclusão. Fechar-me em casa peregrinando dentro de mim mesmo, para, do fulcro, extrair motivo deste nosso encontro domingueiro, alivia-me o espírito e me permite ver tanto na alvorada quanto no ocaso, a vida em plenitude. O exercício, lhes garanto, é saudável e encantador. Há momentos difíceis, bem sei, mas imprescindíveis para autoconhecer-se, além da possibilidade única que Deus concede de encontrar-se com Ele e com os seus. Sentir a vida em si. Não como se apresenta. Como é. Nestas incursões, alimento-me da natureza e da arte. E trato de procurar por elas.

Fixei-me nestas aparentes miudezas, de tal modo, que, para mim, são de uma grandeza única. A pintura do céu, no fim da tarde, a cada dia, surpreendente, inédita, original, nunca a mesma. Permite-me o envelhecer do dia, expectar a noite, apresente-se ou não a Lua de São Jorge, “clara, branca, inteira, cauda de pavão”, sujeito da beleza. O cair da tarde, outra coisa não é senão um artifício do planeta e do sol fazendo acreditar no que não é. Encanto-me com a noite daqui gêmea do encantamento de lá, aqui, preparada pelo cair da tarde; lá, pelo amanhecer em meio ao florir de azaleias e cerejeiras. Chamo pelos vizinhos, aviso os meus, convido a que visitem este espetáculo de que só mesmo a natureza é capaz.

O espetáculo do amanhecer. Garças, galo e raios de sol se combinam, cada qual a seu modo, no tecer da manhã. No entardecer, sino de igrejas se entrelaçam nas cores do céu aquarelado, no brilho da primeira estrela faiscando no azul escuro do céu, fazendo dele novo cenário para noite e vida.

Interessante saber que a cidade também ganha brilho. Luzes artificiais só para melhor entender o poeta fazendo a terra parecer um céu no chão. Tudo isso para que eu, você e outros tantos aprendamos a nos alimentar da beleza, da arte, ajudando-nos a melhor nos conhecermos a nós mesmos.

Estarei permitindo ao leitor, generoso comigo, entender-me? Saberá exatamente aonde pretendo chegar e do que falo? Este tem sido, até aqui, meu verdadeiro capital, capaz de anular minha insignificância, permitindo entender-me melhor a mim mesmo, na minha insignificância e singularidade, no que vejo fora e dentro de mim mesmo, mergulhado que fico, horas, no que se apresenta diante de mim para reconhecer-me dentro de mim. Quando sinto no mais profundo de mim mesmo, lá onde se esconde tudo o que sei mas não entendo quanto deveria. Destruo parte dos meus nadas e me deixo introduzir na hipótese do meu inconsciente, explicitando conceitos, como os que tento deixar aqui e agora.

Teria tanto a dizer sobre a arte que enche minha casa de vida dando, com isso, sustentação à minha própria vida. Olhar penetrante sobre uma tela de Roger Pérez de la Rocha, por exemplo, que me encanta, ou de Guayasamín e suas vibrantes interpretações do mundo tauromáquico, que, a duras penas, tenho para admirar, aplaudir e ver ao longo destes tantos anos, tentando descobrir nelas, o que, escondido em mim, não fui capaz de entender.

Procuro desvendar a razão deste encantamento que a natureza e a arte provocam permitindo incursão capaz de dar-me paz, sobretudo agora quando, na aparente ociosidade imposta pelo mal provocado pela pandemia e pelo desgoverno, querendo reduzir-se a nada o dia, a arte desfaz o mal com música, quadros, textos, livros, poemas, natureza, bastante reduzida pela cidade que cresce desordenada, mas possível de mostrar-se soberana aos olhos que veem e sentem?

Apreende? A arte, em todas as suas manifestações, e só ela, pode abrandar o sofrimento psíquico. Ilumine-se.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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